NOTÍCIA
Fazer um sacrifício (tornar algo sagrado) é questão de estratégia, coragem e oportunidade
Publicado em 28/10/2019
Dizia Millôr Fernandes que jogar xadrez pode, sim, melhorar nossas capacidades cognitivas. Concretamente, é fundamental para aumentar nossa capacidade… de jogar xadrez.
A piada procede, mas é o que ocorre na prática de todo jogo. Para ser um bom jogador de futebol o melhor é treinar num campo de futebol. Para adquirir habilidades de nadador, o melhor é dar braçadas dentro de uma piscina, ter um bom desempenho no basquete exige treinos em quadras de basquete, e assim por diante.
No caso do xadrez, há, porém, uma possibilidade de aprendizado que sai do tabuleiro para a vida pessoal. Foi o que captou o escritor gaúcho Charles Kiefer, no conto Sacrifício de cavalo.
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Quem está familiarizado com as táticas enxadrísticas sabe que sacrificar uma peça para obter vantagem no jogo é típico lance de mestre. O protagonista do conto é também o narrador, vangloriando-se de ter se preparado para vencer com o arrojado sacrifício do seu cavalo.
Todo sacrifício está ligado à noção do sagrado. A palavra vem da expressão latina sacrum facere, isto é, “realizar uma ação sagrada”. E o jogador se preparou longamente para isso:
Depois de muitos anos de treinamento rigoroso, privações, milhares de partidas de grandes mestres estudadas e decoradas, intermináveis exercícios táticos e estratégicos, estava a um movimento de desencadear a possível variante que o levaria, através do sacrifício de seu último cavalo, à vitória e ao título.
A ascese foi dura e exigente. O estudo roubou suas melhores horas de sono. Mas enfim chegara o momento de fazer um ato sagrado, entregando ao adversário o “último cavalo”.
Lembremos que o autor é gaúcho. Não está sacrificando um animal qualquer, mas o seu último e mais querido companheiro de viagens. O cavalo simboliza a força, a coragem, a liberdade em busca de novas terras. Homem e cavalo vão compor um único ser. Sacrificar o último cavalo é sacrificar a si mesmo.
Todo sacrifício é também um ato de fé e esperança. Ao lançar o cavalo nas mãos cruéis do inimigo, quem o faz espera colher dessa derrota uma vitória inesquecível.
Sacrificar um cavalo não é a mesma coisa que sacrificar um peão, um bispo, uma torre ou mesmo a poderosa e orgulhosa rainha. O peão é um pobre coitado entre muitos outros da população anônima. O bispo já deveria estar disposto ao martírio, ou não poderíamos acreditar em suas intenções. A torre é pedra insensível. Sacrificar a rainha, a rigor, configura um gesto de total loucura.
O sacrifício do cavalo lembra os antigos ritos. Remete a crenças arraigadas. Leva-nos a tempos imemoriais.
Aprender significa escolher, e toda escolha é um sacrifício. Por isso a liberdade é sagrada. E por isso a educação implica reverência.
As frases torpes, os pensamentos perversos, as ações asquerosas odeiam qualquer coisa que lembre reverência, humildade intelectual, sabedoria. Cuidar de um livro, meditar, ouvir um mestre, tudo isso parece, aos olhos do indivíduo rancoroso, sinais de fraqueza.
Daí a importância de continuar lendo, meditando, refletindo, estudando. Ainda que a barbárie pareça vitoriosa com suas risadas insanas e gestos ridículos, o que é sagrado continuará sendo mais valioso.
O aprendizado é o que há de mais sagrado. O jogador de xadrez transformará o tabuleiro num altar. Seu último cavalo será queimado, consumido, reduzido a coisa alguma. E este nada abrirá o caminho para a vitória.
No entanto, sempre há um perigo à nossa espreita. O jogador está embevecido demais com seu próprio lance, entusiasmado com sua esperteza. Levanta a peça para sacrificá-la. E então vêm ao seu espírito várias dúvidas. E se o seu plano fosse descoberto? E se a sua mediocridade fosse denunciada? Quem poderia garantir o sucesso?
Levantou o cavalo, a mão úmida tremeu. “Sacrificar um cavalo”, pensou. “Um cavalo…” Manteve a peça no ar uma eternidade, indeciso ainda. O sacrifício de uma peça gera sobre o tabuleiro uma verdadeira tempestade, quebra toda a harmonia, instaura o caos. E ele amava a ordem, a lógica precisa e retilínea, o jogo posicional. Era imprescindível reavaliar a situação.
O que difere a hesitação da reflexão? O jogador, depois de tudo, ainda quer de novo avaliar a situação. A insegurança segura o seu pulso. Sob o pretexto da lógica e com receio do salto no escuro, o sacrifício é adiado.
Não basta saber, portanto. Acumular conhecimento, decorar fórmulas, ser aluno dedicado, ganhar diplomas, tudo isso ainda é insuficiente. O saber requer um outro saber. É preciso saber decidir.
A indecisão pode ser alimentada por uma infinidade de razões. O que falta, em suma, é ter impulso, é apostar na alegria, é aprender a lidar com o imponderável.
Viver não é jogar xadrez, mas uma partida de xadrez pode mostrar como vivemos. Ou como deixamos de viver.
No final desse curto conto de Kiefer, surge um personagem até então escondido. Será dele a última palavra.
Nos campeonatos de xadrez, para que as partidas não se tornem demasiadamente longas, há um relógio duplo, que vai registrando o tempo que cada um dos jogadores utiliza para deliberar e fazer os seus lances. Há um limite para tudo…
Sacrificaria o cavalo, instauraria a confusão generalizada nas tropas inimigas e arremataria de forma brilhante. Além do título de campeão, receberia o prêmio de melhor partida. Era só lançar o cavalo contra o peão protegido. “Sacrificar um cavalo…”, pensou. “Um cavalo…” Ia retomar a análise, mas o adversário já sorria e apontava-lhe a seta caída do relógio.
A metáfora é clara.
Perderemos tudo, se perdermos a hora.
*Gabriel Perissé é escritor e palestrante www.perisse.com.br
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