NOTÍCIA
Rigor e disciplina dos colégios militares atingem bons resultados, mas a um custo alto e sob sérias críticas sobre qual é o legítimo papel da educação
Publicado em 29/04/2019
Por Maria Picarelli: A militarização de escolas públicas, apresentada como alternativa para conter a indisciplina e, indiretamente, melhorar a aprendizagem, está no centro do debate educacional. A proposta foi bandeira da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 e se tornou uma das prioridades do presidente para a área da educação. Tanto que o tema ganhou uma subsecretaria no Ministério da Educação (MEC) e foi objeto de um decreto publicado no “Diário Oficial” já no segundo dia de governo.
Assim sendo, a intenção do MEC é ganhar, voluntariamente, a adesão de estados e municípios ao modelo, mediante a oferta de recursos para a implantação de escolas em que militares e educadores compartilhem a gestão.
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O Distrito Federal será o campo do projeto-piloto do governo federal. Em março, o MEC anunciou que vai destinar R$ 10 milhões para a criação de 36 escolas públicas militarizadas no DF, que se somam a outras quatro que já adotam o modelo desde o início do ano letivo de 2019. Como resultado, a meta do governo do Distrito Federal é chegar ao fim de 2019 com 40 escolas cívico-militares, o que corresponde a cerca de 6% da rede, composta por 693 unidades de ensino.
Com efeito, outros estados também anunciaram que pretendem implantar ou ampliar a oferta de ensino em escolas militarizadas, entre eles Rio de Janeiro, Roraima e Sergipe. Na Bahia, escolas de cinco redes municipais aderiram ao modelo, por meio de convênio entre a União dos Municípios da Bahia (UPB) e o Comando da Polícia Militar do estado.
As estimativas dão conta de que já existem cerca de 120 escolas públicas militarizadas em pelo menos 17 estados. Aliás, a maior parte delas está em Goiás, que concentra 60 unidades. A meta anunciada por Bolsonaro durante a campanha é instalar pelo menos uma unidade deste tipo em cada unidade da federação.
Embora a proposta esteja ganhando mais e mais visibilidade, ao mesmo tempo ela desperta dúvida e controvérsia, em função de seus fundamentos: a tese que sustenta o modelo de escolas cívico-militares é a de que a divisão de responsabilidades da gestão entre militares (cuidando da administração e da disciplina) e os educadores, responsabilizando-se pelas questões pedagógicas, promove a pacificação das escolas, estimulando, de maneira indireta, a melhoria da aprendizagem.
Em resumo, as escolas públicas militarizadas são diferentes dos colégios militares, pertencentes ao Exército. Ao todo, existem 13 colégios militares do Exército no país. Como define o Regulamento dos Colégios Militares, trata-se de “organizações militares que funcionam como estabelecimentos de ensino de educação básica”. Posto que, também segundo o documento, têm o objetivo de capacitar os alunos para ingressar em estabelecimentos de ensino militares, como as escolas de cadete.
Do ponto de vista pedagógico, o currículo é orientado por valores e tradições do Exército, tendo como meta possibilitar que o aluno incorpore valores familiares e patrióticos, bem como formar jovens autônomos e criativos. Também existem escolas militares geridas pelo Corpo de Bombeiros ou pela Polícia Militar nos estados, com finalidades e objetivos semelhantes.
As escolas públicas militarizadas possuem uma natureza diferente, pois estão sob a responsabilidade das secretarias estaduais ou municipais de educação e, normalmente, funcionam num sistema da gestão compartilhada entre militares e educadores.
Só para exemplificar, o principal argumento para incorporar militares à gestão de escolas públicas é a pacificação do ambiente escolar que estaria tomado pela violência, prejudicando o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos.
No entanto, se, por um lado, existem evidências de que as agressões e atos de violência presentes em diversas escolas criam um ambiente prejudicial ao desenvolvimento e à aprendizagem, por outro, a questão que surge é se a militarização configura-se como uma alternativa capaz de solucionar os conflitos que perpassam o ambiente escolar.
Análise da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que em 55 países participantes do Pisa, em 2009, o desempenho dos estudantes tende a ser melhor onde o clima na sala de aula é mais propício à aprendizagem. De acordo com a organização, o clima escolar é uma das poucas características que apresentam associação significativa com o desempenho.
Por conseguinte, no que diz respeito à incidência de violência na escola, segundo pesquisa coordenada pela socióloga Miriam Abramovay, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) divulgada em 2016, 70% dos alunos de escolas públicas nas capitais investigadas afirmaram que houve violência na escola nos últimos 12 meses.
O estudo – que envolveu 6.709 estudantes, de 12 a 29 anos, em sete capitais (Maceió, Fortaleza, Vitória, Salvador, São Luís, Belém e Belo Horizonte) – também revela que 42% dos entrevistados sofreram violência verbal ou física na escola e que 25% das ocorrências se dão na sala de aula.
Seja como for, os de violência mais comuns são discriminação, ameaças e xingamentos, muitas vezes com a roupagem de brincadeira. Agressões físicas e homicídios, caracterizados na literatura como “violência dura”, são mais raros.
“Concordamos que os professores não podem ensinar e os alunos não podem aprender em um ambiente permissivo, com altos níveis de incivilidades, disrupção, indisciplina. Contudo, em nome da busca pela disciplina, está sendo proposta como alternativa a adoção de um ambiente militarizado coercitivo, que traz consigo a violência simbólica”, questiona Telma Vinha, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela também é uma das coordenadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), que reúne pesquisadores da Unicamp e Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Por certo, a questão levantada por Telma é umas das que estão no centro do debate e gerou reações como a Carta de Princípios sobre as escolas cívico-militares, assinada por 14 grupos de pesquisa ligados à Associação de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia.
Deste modo, entre os pontos destacados na Carta está o risco de a forte hierarquia e o controle disciplinar, típicos das estruturas militares, instaurarem um ambiente baseado em ordens e imposições, ao invés de fomentar a educação em valores – ou seja, estimulando a convivência respeitosa entre as pessoas, a formação de indivíduos autônomos, capazes de reflexão, crítica e escolha de valores em meio à diversidade.
Um argumento que pesa a favor da militarização são bons resultados alcançados pelas escolas que seguem o modelo. Esse é, segundo gestores, o principal fator que o torna bem aceito entre as famílias e comunidades no entorno das escolas. “Temos 60 escolas funcionando no modelo cívico-militar em Goiás e pretendemos levá-lo a outras 32 escolas. A proposta é muito bem aceita pelos pais e pela comunidade”, defende a secretária de Educação de Goiás, Fátima Gavioli.
Outro ponto que atrai a simpatia das famílias e comunidades é a mudança que o modelo militar opera no clima escolar. Esta é a opinião de Antonio Carvalho da Silva Neto, prefeito de Araci, município do semiárido baiano, que introduziu o modelo na maior escola da rede municipal este ano.
“A presença dos militares na escola permite a retomada de valores e comportamentos que estavam abandonados, como o respeito ao professor, cantar o hino nacional e mais disposição dos alunos para acompanhar as aulas”, afirma o prefeito, que também é vice-presidente da UPB. “Como a escola passa a ser organizada, os professores têm tempo e condições de dar aula”.
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No Distrito Federal, também é boa a aceitação das comunidades onde as quatro primeiras escolas militarizadas foram implantadas, afirma Mauro Oliveira, assessor especial da Secretaria de Educação do Distrito Federal, responsável pelo projeto. “Foram realizadas consultas e em todas elas a aceitação foi grande, tanto por parte dos pais quanto dos professores”, afirma ele.
A boa recepção, na opinião dele, estaria ligada ao fato de que essas escolas representam uma opção para famílias que querem que seus filhos estudem num ambiente organizado e favorável à aprendizagem, mas não contam com as mesmas opções disponíveis para quem pode pagar as mensalidades de um colégio privado.
Em contrapartida, o Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) divulgou nota contrária à medida, classificada como uma “maquiagem dos reais problemas da educação” e defende que o ideal seria criar mecanismos para atender todos os alunos de maneira democrática, sem concentrar recursos e investimentos em determinadas unidades da rede.
As quatro escolas militarizadas do Distrito Federal localizam-se em regiões vulneráveis e marcadas pela criminalidade, um dos pré-requisitos para a instalação das escolas cívico-militares: Cidade Estrutural, Recanto das Emas, Ceilândia e Sobradinho. Além disso, têm Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) abaixo da média.
Em 2017, nos anos finais do ensino fundamental, o Ideb do Distrito Federal foi 4,9 (inferior à meta prevista, 5,3). O Ideb da escola de Ceilândia incluída no projeto foi 3,1, e o da unidade da Cidade Estrutural, 4,1.
Além da pacificação do ambiente escolar, uma das expectativas envolvidas nos projetos de militarização de escolas públicas é melhorar a aprendizagem e o desempenho dos alunos, refletido em indicadores como o Ideb.
Nesse sentido, o desempenho dos colégios militares nas avaliações oficiais funciona como um espelho: considerando todo o país, em 2017, o Ideb dos colégios militares no ensino fundamental 2 foi de 6,5, ao passo que nas escolas públicas a média foi de 4,1.
Em Goiás, onde as escolas cívico-militares existem desde 1999, os bons resultados no Ideb também servem como argumento em defesa do modelo. O Colégio Militar Dr. Cezar Toledo teve o melhor Ideb do estado em 2017, 7,5, no 9.º ano, bem acima da média nacional (4,7) e da média das escolas privadas (6,4). O bom desempenho se repete no ensino médio – 6,5 contra uma média nacional de 3,8.
No entanto, segundo analistas e pesquisadores, resultados como esses não podem ser interpretados de maneira isolada, já que o bom ou mau desempenho dos estudantes está associado a um conjunto de variáveis – entre elas, as condições e infraestrutura ofertadas, o que está diretamente relacionado com os investimentos. E neste quesito, os colégios militares estão em vantagem em relação às escolas públicas.
“Historicamente, os colégios militares possuem uma condição diferenciada das demais escolas públicas. São escolas que recebem investimentos bastante superiores às escolas públicas, atendem a dependentes de militares e destinam uma parte das vagas a processos seletivos para a comunidade”, contextualiza Denise Carreira, coordenadora institucional da organização Ação Educativa.
Dados oficiais indicam que um aluno de colégio militar custa três vezes mais do que um estudante de escola pública: segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), um aluno de escola pública custa cerca de R$ 6 mil ao ano, ante R$ 19 mil nos colégios militares.
Outro aspecto relevante na análise do desempenho dos alunos dos colégios de modelo militar é o perfil do estudante. No caso dos colégios militares do Exército, geralmente os alunos são escolhidos por meio de processos, até mais concorridos que vestibulares: em algumas escolas, pode chegar a 270 candidatos por vaga. Por isso, tendem a atrair candidatos de nível socioeconômico mais alto, com mais condições de se preparar para as provas.
“Embora alguns optem por sorteio ao invés de processo seletivo, os colégios militares atraem um público menos marcado pelas desigualdades sociais do que aquele presente na maior parte das escolas públicas brasileiras”, complementa Denise.
Paralelamente, estudos nacionais e internacionais apontam que os resultados obtidos por alunos e escolas não podem ser interpretados de maneira isolada, pois dependem de um conjunto de fatores. Entre eles, as condições socioeconômicas são um parâmetro fundamental: desde o renomado Relatório Coleman, publicado nos Estados Unidos na década de 1960, pesquisas evidenciam a associação entre fatores extraescolares, sobretudo as características socioeconômicas e culturais dos alunos, e o acesso à educação e os resultados.
No Brasil, pesquisas como as desenvolvidas por José Francisco Soares, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atestam que a melhoria da estrutura da escola pode impactar positivamente o desempenho dos alunos. Aspectos como equipamentos, segurança, limpeza, qualidade das salas e do prédio, além da seleção de alunos, podem contribuir para ganhos do desenvolvimento cognitivo dos alunos.
Nessa direção, Denise Carreira, relativiza os resultados obtidos pelas escolas militares. “Se todas as escolas públicas recebessem o investimento financeiro que as escolas militares recebem, seria uma outra realidade.”
Outro parâmetro importante a ser considerado, quando se trata de políticas públicas, são as evidências sobre seus impactos e resultados. “Não é apenas uma questão de investimento, se determinada ação é viável ou não financeiramente. É preciso ter um diagnóstico claro do problema e saber se a estratégia escolhida é, de fato, a melhor para solucioná-lo”, analisa Davi Saad, diretor-presidente do Instituto Natura.
Nessa medida, ele argumenta que, tendo em vista a melhoria da aprendizagem, os programas de educação integral que vêm sendo implementados com sucesso em diversas partes do país poderiam ser mais efetivos.
A saber, a legislação educacional brasileira é outro aspecto que tem orientado o debate sobre as escolas cívico-militares. Aliás, um argumento usado por críticos do modelo é o de que ele contraria a legislação educacional brasileira.
A Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Plano Nacional de Educação (PNE), enfim, os principais instrumentos legais que norteiam a educação brasileira preconizam que a educação deve promover sujeitos autônomos e críticos.
Contudo, o modelo militar vai justamente contra essa concepção de educação, ancorada na legislação brasileira. Ao mesmo tempo, contraria o sentido do que é educação, na visão de estudiosos como Vitor Paro, professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
“A educação não é transmissão de cultura, como se acredita no senso comum. Educação é a apropriação de conhecimentos, porque o indivíduo só aprende se tiver vontade e decide aprender”, analisa Paro. O desafio que se coloca para a escola, portanto, é propiciar condições para que a criança e o jovem queiram aprender. “Numa escola onde os estudantes querem e gostam de aprender não existe violência nem preguiça. É preciso levar o educando a querer aprender.”
Esta é a chave para a educação em valores, segundo as pesquisas e os estudos realizados no Brasil e em outras partes do mundo. “Educar é diferente de treinar”, define Maria Suzana Menin, professora titular aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisadora-colaboradora da Fundação Carlos Chagas (FCC).
Coordenadora de diversas pesquisas sobre educação moral em escolas públicas, Suzana enfatiza que, muitas vezes, existe uma confusão entre a educação em valores e a educação moral, tratada como disciplina e obediência.
Segundo ela, o caminho pela disciplina, pela hierarquia, até pode levar uma pessoa a obedecer a uma ordem. “Mas nada garante que o valores envolvidos naquela ordem serão interiorizados pela pessoa, que ela se tornará consciente deles e passará a agir daquela maneira porque entende a importância daquilo.”
Em outras palavras, é diferente um estudante compreender que não pode agredir um colega negro porque respeita as diferenças e não cometer a agressão por medo de ser punido.
“A função da escola pública é formar cidadãos. A defesa da escola militarizada confunde os fins da educação definidos na legislação brasileira. A lei prevê a formação de um cidadão solidário, respeitoso e não de um cidadão que obedece às ordens”, afirma Suzana.
Em outras palavras, a militarização das escolas não se configura, necessariamente, como o único caminho para difundir valores morais e para a instauração de uma convivência respeitosa no ambiente escolar.
Outra via é o desenvolvimento de ações que permitam trabalhar e vivenciar, no cotidiano da escola, essas dimensões.
Para isso, as questões morais têm de ser tratadas como parte do currículo, de modo que professores e demais educadores, juntamente com os estudantes, criem estratégias para prevenir a violência na escola. É assim que ocorrem em países como a Finlândia, onde o modelo de escola é baseado na autonomia de professores e alunos, ou na Espanha, onde, desde 2007, todas as escolas desenvolvem um plano de convivência, baseado em diagnóstico e com ações voltadas para a resolução de conflitos.
Nessa direção, Poços de Caldas está implantando um Plano de Convivência Ética nas 88 escolas da rede municipal, como parte do currículo. A iniciativa é considerada pioneira no país.
“A convivência respeitosa é um conteúdo tão importante quanto os outros”, analisa a secretária de Educação de Poços de Caldas, Flávia Vivaldi. Daí a formulação do plano, resultado de um processo de elaboração coletiva que já dura dois anos e envolve uma rotina de formações e o engajamento de professores e equipe técnica das escolas. Partindo de um diagnóstico da situação das escolas, estão sendo traçadas ações e atividades para cada uma delas, além de mecanismos de monitoramento. “Como envolve toda a rede, não é um processo simples, da noite para o dia.”
Na visão da secretária, a segurança é necessária nas escolas, mas não é o suficiente para qualificar as relações na escola, chave para enfrentar e prevenir a violência. “Escola é espaço de trabalhar com as diferenças e não apenas com a hierarquia e obediência”, defende.
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