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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 23/09/2018

Entre aspas e parêntesis

As políticas educativas insistem, de forma mecanicista, em compartimentar a escola em ciclos, níveis e anos...

Os professores do ensino superior (haverá “ensino inferior”?) queixam-se dos baixos índices de proficiência dos seus alunos. O ensino médio (ser “médio” significa estar no meio ou ser segmento terminal?) atira a culpa para o fundamental. O fundamental, para a educação infantil (“infantil” será adjetivo, que qualifica a educação?). Por sua vez, este segmento (por que razão se subdivide a educação em cartesianas frações?) atira as culpas para as famílias. E as famílias… ficam sem saber quem acusar.

A sequencialidade regressiva, reiterada em recentes leis, é uma praga. Condicionando as iniciativas dos legisladores e deita a perder todo e qualquer esforço de mudança. Pela via da sequencialidade regressiva, o Enem determina o ensino médio. E este determina os objetivos do ensino fundamental, contribuindo para a perenização de fenômenos como a exclusão social.

Sucessivos governos criticam as políticas do governo anterior, alteram e justificam medidas contrárias às políticas dos seus antecessores.  Medidas de política educativa, como a espúria Base Nacional Comum Curricular, continuam a contrariar o espírito da Lei de Diretrizes e Bases, inviabilizando a complementaridade e sequencialidade entre ciclos da educação básica (por que razão os manuais didáticos são destinados ao “2º ano” do “1º ciclo”?).

Afinal, é ciclo ou é ano? A compartimentação estanque entre ciclos é mais uma manifestação absurda dos cânones de um paradigma educacional mecanicista – o paradigma da instrução – e origina rupturas traumáticas, perniciosos efeitos na psique dos alunos, que não transitam entre ciclos de um mesmo ensino básico, mas entre comunidades escolares autistas. Hutmacher afirmou que, ao entrarem no ciclo seguinte, os alunos experimentam uma espécie de regressão.

Mas, se os professores e legisladores são de opinião de que a articulação é fundamental para a unidade da educação básica, por quanto tempo se prolongará o predomínio da justaposição formal entre ciclos e a dependência de uma matriz curricular, que reproduz cartesianos vícios? Por que não são questionados desenraizamentos culturais a que os alunos são submetidos em idades tão vulneráveis?

Em preâmbulos e entrelinhas, em pleno contexto da quarta revolução industrial, as medidas de política educativa continuam a reproduzir um modelo educacional caraterístico da primeira (aqui, caberia mais um parêntesis, mas não quero abusar da paciênca do eventual leitor). Entre eufemismos, aspas teorizantes e parêntesis, o dito sistema continua à deriva, deixando para os vindouros um rastro de reformas fósseis.

É provável que os seus autores não tenham lido o aviso do amigo Nóvoa: Durante muito tempo as reformas sonharam que podiam mudar os sistemas educativos. Desgastaram-se em intermináveis arranjos de currículos, esquecendo os modos de organização do trabalho escolar.

Pois é. Quando assisto a palestras sobre inovação, preo­cupo-me com o fato de os palestrantes não acrescen­tarem ao discurso algo que é indispensável acrescentar: que tudo aquilo que transmitem numa palestra não pode ser concretizado numa escola segmentada, herdeira de práticas sociais do século XIX.

*José Pacheco Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em  Vila das Aves (Portugal)

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