NOTÍCIA
Se metáfora fosse campeonato de pontos corridos, o futebol seria campeão com muitas rodadas de antecipação – mas o vice talvez ficasse com a Bíblia
Publicado em 31/01/2018
• Quem procura… – Quem, ao ver o célebre slogan-provérbio do SBT em fins dos anos 80 (então, ainda TVS), se lembraria de que é literalmente uma frase de Jesus Cristo (Mt 7, 8): “Quem procura, acha” (ao qual Sílvio Santos acrescentou apenas o advérbio: “Quem procura, acha… aqui”).
• Quem com ferro fere… – Jesus inspirou alguns ditos proverbiais comuns na linguagem popular. Muitos podem se escandalizar ao saber que é bíblico (do Velho Testamento) o duro “Olho por olho, dente por dente”, prescrito três vezes (Ex 21, 24; Lv 24, 20 e Dt 19, 21), mas revogado por Cristo (Mt 5, 38), que propõe, em seu lugar, a também proverbial “oferecer a outra face” (Mt 5, 39) e ainda (Mt 26, 52) a advertência: “quem empunha a espada, pela espada perecerá” (ou, se se prefere: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”). Também é de Jesus, a comparação “Cego que guia outro cego” (Mt 15,14; Lc 6, 39).
• Quem semeia ventos… – São bíblicos os conhecidos provérbios: “Quem semeia ventos, colhe tempestades” (Os 8, 7) e: “Quem dá aos pobres, empresta a Deus” (Pv 19, 17).
• Dois pesos e duas medidas – É expressão bíblica presente em Prv 20, 10.
• Umbigo do mundo – No sentido de alguém se considerar o centro de tudo, o mais importante: tabur haaretz (umbigo da terra) aparece em Jz 9,37 e Ez 38,12.
• Dar murro em ponta de faca – Formulação ligeiramente modificada de At 26, 14, que recolhe a fala de Cristo a seu perseguidor Saulo: “Dura coisa te é recalcitrar contra o aguilhão”.
• Cruzar os braços – A expressão, hoje corriqueira e integrante do vocabulario sindical, aparece nas formas “cruzar os braços” e “ficar de braços cruzados” já com o sentido de “não trabalhar”, em Pv 6, 10 e Ecl 4,5.
• Adeus – Usado para despedida que se presume definitiva (e, portanto, encomendo-te a Deus), encontra-se em Atos: Paulo despede-se da comunidade e diz “Não voltareis a ver o meu rosto… a Deus vos encomendo” (At 20, 25 e 32).
• O demônio do meio-dia – Uma expressão curiosa, não proverbial e mesmo desconhecida pelos falantes contemporâneos, que o escritor Andrew Solomon foi buscar no Salmo (90[91], 6), na tradução da Vulgata, para o título de seu livro, já clássico sobre a depressão O demônio do meio-dia (The noonday demon).
Embora se trate de forma bem portuguesa, a fórmula de insulto: “vá para a puta que o pariu”, ganha sentido às luzes da Bíblia. Como frequentemente ocorre, frases feitas tendem a ser repetidas automaticamente, sem que se atente a seu sentido original. O significado exato de mandar para a pqp faz-se presente no confronto dos cariocas e do mineirinho, que recolho de um destacado site de piadas (orapois.com.br), seção “mineiro”:
Dois cariocas muito espertos foram passar umas férias em Minas.
Ao chegar, um pergunta ao outro:
– Vamox tirar uma com o primeiro mineiro que aparecer nessa extrada?
– Aí, beleza, cara, vamox nessa!
Logo à frente, aparece um mineirinho acanhadinho, coitado…
Os cariocas param o carro e um deles pergunta:
– Aí, mineirinho, para onde nóx vamox falta muito?
O mineirinho, muito acanhado, responde:
– Depende uai! Se oceis vão pra puta que o pariu já passaram; se vão à merda, falta dois quilômetros [a cidadezinha rival]; agora se vão tomar no c é aqui mesmo…
A mensagem subjacente quando se manda alguém para a pqp é a de que o indivíduo mau, sacana, chato etc. não tem lugar no convívio humano e não deveria ter saído da barriga da mãe (no caso, a responsável por ele ser o fdp que ele é…) e para lá deve ser reencaminhado… A ideia de voltar ou de não ter saído do ventre materno ocorre na Bíblia: daquele que o vai entregar, Jesus diz que melhor lhe fora não ter nascido (Mt 26, 24; Mc 14, 21) e o profeta Jeremias, nesse caso, diante das desgraças que sofre, lamenta por ter saído do ventre materno (Jer 20, 14 e ss.). E quem se comporta como néscio, diz o Eclesiástico (23, 14), chegará a desejar voltar ao ventre da mãe, amaldiçoar o dia em que dele saiu…
Modos de falar também sofrem influências (ao menos semelhanças) dos raciocínios bíblicos.
Superlativo duplicado
Uma forma de superlativo semita é a conhecida “x dos x”. Aparece, por exemplo, em Apocalipse 17, 14 (ou 19,16), quando se diz de Cristo, que é Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Curiosamente, esse formato bíblico reaparece (surpresa das surpresas) no hino do Corinthians: “Salve o Corinthians, o campeão dos campeões”.
Note-se, apenas de passagem, que o próprio nome do time brasileiro é bíblico, remete à Epistola aos Coríntios (em inglês, Corinthians). Mais precisamente à passagem em que São Paulo compara os esforços requeridos pela vida cristã aos de atletas e corredores que desejam vitórias (I Cor. 9: 24 e ss.).
No século 19, ante o preconceito de igrejas contra o esporte (“culto ao corpo”, etc.), o aval do Apóstolo era usado por cristãos esportistas que invocavam a Epístola (daí o nome do time inglês Corinthian, que inspirou o nosso Corinthians).
O uso do passado para indicar futuro
A gramática semita pode valer-se do passado para expressar o futuro, que aparece, assim, como mera resultante do passado. Como ensina Aida Hanania, falando da peculiar visão semita do tempo, ancorada no passado:
“É como se, nessa visão monolítica do tempo, o presente e o futuro não tivessem autonomia em face do passado, este, sim, determinante e determinador. Essa preponderância do passado repercute na gramática”.
Diz o Eclesiastes (1,9): “O que foi é o que será; o que se fez é o que se tornará a fazer: nada há de novo sob o sol!”.
O futuro é, assim, até em termos gramaticais, determinado pelo passado e por ele expresso em sentenças proverbiais, como em “Quem semeia ventos, colhe tempestades”, que no original soa: “semeou ventos, colheu tempestades”.
Tal fato torna-se compreensível quando nos lembramos de alguns exemplos de uso semelhante em nossa língua, especialmente em linguagem publicitária. Como na campanha de 2012 da Skol retornável: “Trocou, economizou” (quem trocar, economizará); ou na antiga do Estadão: “anunciou, vendeu” (quem anunciar, venderá). Ou a da Sedex “mandou, chegou” (se mandar, chegará). E se escrever e não ler, o pau comerá (“Escreveu, não leu, o pau comeu”). E quem bater, levará (“Bateu, levou”).
* Jean Lauand é Professor Titular Sênior da Faculdade de Educação da USP e professor das Faculdades Integradas Campos Salles