Ilustração de Dave Santana | Crédito: Divulgação
Marca da boa crônica e do bom cronista, a passagem da narrativa sobre o cotidiano – o “causo” com um pé na oralidade – para a reflexão de teor mais profundo e universal, mergulho em temas maiores, é marca registrada de muitos dos escritos do capixaba Rubem Braga (1913-1990).
Nascido na mesma Cachoeiro de Itapemirim do cantor Roberto Carlos, Braga deixou vasta obra como cronista, poeta e jornalista. Opositor de Getúlio Vargas, ativista, conheceu cadeias e rodou mundo como repórter, acompanhando grandes fatos do século 20, como a Segunda Guerra Mundial e as eleições de Perón, na Argentina, e Eisenhower, nos Estados Unidos, nas décadas de 40 e 50.
Ao longo da vida, manteve forte ligação com suas raízes e com o mundo no qual cresceu. Nesse cenário, a ligação com a natureza teve papel importante tanto em sua produção como em sua forma de olhar o mundo. É o que vemos na seleção de seus textos para
Dois pinheiros e o mar – e outras crônicas sobre meio ambiente (Global). Para o livro, foram pinçadas crônicas escritas entre 1948 e 1969.
Como, apesar de capixaba, Rubem Braga também fez do Rio de Janeiro a sua casa, faz lembrar em muitos momentos os filmes de Júlio Bressane e as recorrentes imagens de mar e montanha e os múltiplos significados que esse par adquire ao longo da obra do cineasta.
Mar e montanha são, aqui e ali, metáforas que evocam o ir e vir da vida, a densidade emocional, a profundeza dos sentimentos, o tempo, a memória, o que é robusto, o impenetrável.
Em “Praia”, crônica de 1956, ao comentar as mudanças do progresso percebidas numa volta a Cachoeiro e à Barra do Itapemirim – a fábrica de cimento, as novas casas – recorda a simplicidade do lugar que o pai descobriu anos antes e em que fez sua morada com uma sala em que podia jantar diante das ondas, ouvindo e vendo a espessura do mar.
Anos antes, em 1953, escrevera sobre nova ameaça de derrubada do Morro de Santo Antônio, no centro do Rio de Janeiro, que se concretizaria ainda naquela década, dele restando hoje apenas uma parcela. Predizendo o futuro, a crônica de Braga sentenciava:
“Perderemos um dia esse monte verde, alegre, no meio de nossa paisagem de cimento. A cidade cresce. E alguma coisa, dentro de nosso peito vadio de amante da cidade, vai diminuindo, vai se apertando – como se, velho muar sentimental, o coração perdesse, com aquele capim bonito, um pasto de saudades e lembranças queridas.”
E se o progresso é pretexto para derrubada do morro, espertezas outras também estão presentes em Marataízes (ES), onde Rubem tinha uma pequena casa de praia. Ao denunciar, em “Mare Nostrum”, os movimentos de grupos para vedar, com uma construção, a passagem sua e de todos para o mar, ele lembra: “Não pretendo ter o privilégio do mar; ele é de todos, e todos devem ter acesso a suas pedras e praias. (…) A pedra e praia são o último refúgio da democracia, a única riqueza do pobre, a única liberdade do oprimido”. Hoje, 64 anos depois, ouvimos “As caravanas”, de Chico Buarque, e vemos que as formas de vedar o acesso ao mar se multiplicaram. Por sorte, as de lutar contra isso também.
Dois pinheiros e o mar – e outras crônicas sobre meio ambiente, de Rubem Braga, com ilustrações de Dave Santana (Global Editora, 104 páginas, R$ 35).