NOTÍCIA

Edição 221

Escolas jesuítas da Catalunha apostam na renovação do modelo pedagógico para se adaptar aos novos tempos

Experiências espanholas mostram como pensam os jesuítas do século 21

Publicado em 31/08/2015

por Mariana Dornelles, de Barcelona

 

Espaços aconchegantes e motivadores: a mudança no ambiente esteve entre as principais medidas adotadas

 
Repensar a escola não é um desafio qualquer. Pelo contrário, requer daqueles que o propõem uma postura flexível, autocrítica e aberta às possibilidades de entender a educação a partir de diferentes pontos de vista. Imbuídos desse espírito, diretores da Fundação Jesuítas Educação da Catalunha, na Espanha, lideraram nos últimos anos um processo de reformulação do modelo pedagógico até então adotado. O que motivou a iniciativa foi o reconhecimento da defasagem do sistema, incompatível com as novas maneiras de ter acesso ao conhecimento e de transmiti-lo, com as novas necessidades profissionais e com a complexidade da realidade atual. Adaptar as escolas não seria suficiente; era preciso transformá-las.
O modelo escolhido para substituir o antigo foi o das escolas democráticas, onde os alunos estão no centro de um aprendizado ativo. De saída, a Fundação iniciou em 2009 um processo participativo chamado Horizonte 2020 (em catalão, Horitzó 2020) com o objetivo de propor debates sobre como deveria ser a escola ideal para enfrentar os desafios do século 21. Mais de 13 mil pessoas relacionadas direta ou indiretamente à rede de escolas jesuítas foram convidadas a participar, entre elas alunos, pais, professores, diretores, gestores, empresários, funcionários de instituições, políticos e membros da Igreja. Nas atividades propostas, o grupo foi incitado a refletir sobre três questões fundamentais: que escola queremos? Que futuro desejamos? Como deve ser a escola em 2020?
Em um primeiro momento, os participantes foram orientados a pensar exclusivamente no futuro que desejavam, deixando de lado o “como” fazê-lo. A ênfase estava em explorar o sonho e a imaginação de cada um dos envolvidos para que pudessem surgir ideias sem limitações. De acordo com a Fundação, o objetivo era que, ao final desse processo, fosse construído coletivamente um Ratio Studiorum (veja texto ao lado) do século 21: um conjunto de orientações que, baseadas nos princípios e valores da pedagogia inaciana (inspirada na experiência de Santo Inácio de Loyola, 1491-1556, fundador da Companhia de Jesus), além dos conhecimentos da pedagogia, da psicologia e da neurociência, servisse de orientação para educar as crianças e jovens.
Ao todo, foram apresentadas 56 mil ideias. Dessas, 17 propostas foram selecionadas para servir de base para a formulação do modelo sincrético que começou a ser implementado no ano passado. De setembro de 2014 a junho de 2015, cinco das oito escolas que integram a Fundação adotaram parcialmente as novas bases. As etapas escolhidas para iniciar esse processo foram a educação infantil e um período concreto da educação fundamental: a transição da educação primária à secundária no sistema educativo espanhol.
A eleição dessas etapas não foi ocasional. No caso da etapa infantil, a Fundação considerou fundamental incidir nesse período para construir as bases para o desenvolvimento das inteligências múltiplas, necessárias para transformar informações em conhecimento. Já no caso do ensino fundamental, haviam diagnosticado uma perda de estímulo e interesse entre os alunos de 9 a 12 anos devido à desconexão entre a realidade e o modelo pedagógico aplicado nas escolas.
Mudanças
A aplicação do projeto Horizonte 2020 na educação infantil resultou, na prática, na implementação do Modelo Pedagógico da Etapa Infantil (Mopi), baseado em onze pilares: equipe docente integrada, criativa e inovadora; alunos protagonistas; espaços flexíveis e dinâmicos; participação das famílias; recursos digitais; tempo flexível; avaliação dinâmica; metodologia diversa; estimulação precoce das inteligências; contato com o inglês e integração de valores. De todos os pontos, o de maior destaque foi a necessidade de substituir os espaços antigos por outros, mais acolhedores e motivadores, com a intenção de desenvolver projetos globais e diversos para a estimulação das inteligências múltiplas.
Já na transição dos 9 aos 12 anos, o resultado foi a criação da Nova Etapa Intermediária (NEI). Em vez de estudar por matérias – com exceção de matemática, música e educação física -, os alunos passaram a realizar projetos transversais e coletivos trabalhados semanalmente a partir de materiais elaborados pelos professores; só há livros nas aulas de inglês e francês. Os alunos passaram a ser agrupados em turmas de 60 (e não mais de 30) e a contar com o apoio de três tutores de disciplinas diferentes. Os espaços também foram alterados: ficaram mais amplos, luminosos e coloridos.
O uso do tempo foi igualmente reformulado. Sem horários fixos, os alunos passaram a desenvolver as atividades debatidas no início da manhã, com avaliação ao final da jornada. O recreio tampouco ficou com um horário estabelecido: os estudantes passaram a decidir quando sair, de acordo com o momento em que consideravam necessário. Os deveres de casa também não existem mais, pelo menos da forma habitual. Os alunos passaram a ser estimulados a pesquisar temas relacionados aos projetos que trabalham em sala.
Impactos da primeira experiência
A direção do Horizonte 2020, ciente de que as mudanças nos processos educativos são lentas, optou por fazer uma avaliação do projeto somente ao final do segundo ano de implementação. No entanto, a observação do cotidiano das escolas revelou alguns resultados interessantes. De acordo com o diretor-geral adjunto da Fundação, Josep Menéndez, houve quatro mudanças fundamentais. A primeira delas se refere à retomada da conexão dos alunos com o aprendizado. Segundo ele, quase sempre chegava um momento da escolarização em que os alunos perdiam o interesse. “Agora eles estão permanentemente conectados. Houve uma mudança de atitude. Eles estão alegres e entusiasmados, o que acaba contagiando os pais também”, relata.
A segunda foi o ajuste de foco para o processo de aprendizagem, e não para o resultado. O terceiro impacto, mesmo não estando entre os objetivos iniciais do processo, foi o aumento, por parte dos alunos, da consciência e da capacidade de explicar o que fazem na escola. “Como a intenção não é vincular o aprendizado à realização de provas, eles estão mais relaxados e atentos ao que fazem e agora têm a capacidade de explicar como e por que realizam determinadas atividades”, explica.
 

Reforma educacional procurou motivar e inserir os alunos no centro do processo educacional

 
Por último, houve uma evolução significativa no comportamento dos alunos mais tímidos ou daqueles que apresentavam problemas diagnosticados de atenção. Como o trabalho em projetos atribui responsabilidades para cada aluno, eles passaram a participar mais.
Além desses resultados, Josep Menéndez fez questão de destacar que a transformação mais radical foi a mudança cultural dos professores, que tiveram de redefinir o próprio papel na escola e no ensino. Mais importante que dominar técnicas específicas, agora eles têm de aprender a trabalhar em grupo, a confiar no trabalho do outro e a acompanhar alunos de outras matérias. “Eles estão cansados, mas muito satisfeitos e confiantes. Aprenderam a trabalhar em equipe e a controlar o próprio estresse em relação ao conteúdo e às aulas. Além disso, percebem que estão participando de uma mudança importante, então se sentem vitoriosos”, explica.
Quanto à opinião das famílias sobre o projeto, Fernando Manzano, pai de uma aluna de 10 anos, relatou sua experiência: “A mudança de atitude da minha filha foi evidente. Às vezes era difícil levá-la para a escola; ela se entediava e não explicava nada do que fazia. A partir da NEI, ficou com mais vontade de ir à aula e passou a demonstrar isso em casa, explicando constantemente o que estava fazendo, como aprendia, do que mais gostava e como trabalhava com os companheiros, apesar da diferença entre eles”, contou.
Ao avaliar o novo sistema de ensino, Fernando destaca como uma das mudanças mais relevantes o estabelecimento de trabalhos em equipe. “Ao trabalhar com projetos e em grupos, os alunos adquirem responsabilidade na hora de trabalhar, porque sabem que não podem decepcionar os demais. Isso é motivador. Um dia, tive quase de obrigar minha filha a ficar em casa. Ela estava com 39°C de febre e queria ir de todas as maneiras para a escola para entregar a parte dela de um trabalho feito em grupo. Acabei fazendo isso por ela”, conta.
O segundo aspecto mais importante em sua opinião foi a conscientização dos estudantes. “Como fazem uma reflexão no início e no final da jornada, eles não ficam um dia sequer sem pensar no porquê das coisas. Este aspecto de maturidade foi muito importante.” Perguntado sobre a preferência entre o modelo anterior e o atual, Fernando não hesitou: “Sem dúvida nenhuma, o modelo atual. Ele fortalece a personalidade de cada aluno e desenvolve o aspecto humano”, finaliza.
Vozes dissonantes
Mas nem todas as opiniões são totalmente favoráveis ao projeto. Apesar de reconhecer a importância da iniciativa, o psicólogo e educador Jaume Funes acredita que existe um conservadorismo ideológico que não permite à FJE inovar verdadeiramente em termos de valores. “O Horizonte 2020 não considera a equidade de oportunidades ou a diversidade como valores. Falam em desenvolver as capacidades das crianças, mas não em melhorar as oportunidades de acesso, com impacto nos bairros onde estão localizados. Inovar com mais impacto social significa adaptar as oportunidades às diferenças e às desigualdades dos alunos”, argumenta.
Outros criticam ainda o excesso de repercussão do projeto frente às diversas práticas inovadoras já desenvolvidas em outras escolas. O pedagogo e jornalista Jaume Carbonell afirma que as ações que vêm sendo discutidas e realizadas não constituem nenhuma grande novidade. Em seu livro Pedagogias do século XXI (de 2015 e ainda não publicado no Brasil), o autor destaca projetos inovadores desenvolvidos em diversas instituições de ensino. A pouca atenção dada a eles se deve ao fato de que a maioria das escolas enfrenta problemas estruturais e de autonomia, o que acaba restringindo o desejo de transformação a algumas práticas pontuais.
Sobre os próximos passos do trabalho da Fundação, a intenção é incluir mais três escolas ainda este ano e somá-las às outras cinco já participantes. Ao final do segundo ano, espera-se criar um modelo da etapa infantil e intermediária que possa ser aplicado futuramente em todas as escolas da rede. A previsão é que, em 2020, todas as etapas educativas já tenham começado a mudança.

Ratio Studiorum
Ordenamento elaborado em 1599 para orientar a atividade dos educadores jesuítas, delimitando suas funções e o modo de realizá-las. Tinha como princípios pedagógicos:
■ Autoridade: a autoridade do educador vem de Deus e deve provocar um temor filial e um amor confiante;
■ Adaptação: as regras devem se adaptar à realidade de cada escola e de cada grupo de alunos;
■ Atividade: os alunos devem participar ativamente de todas as atividades propostas, como recitar, ler, perguntar e responder.
■ Motivação: concebe a existência de elementos motivadores (interesse, entusiasmo, emulação, certame e honra) para conferir um ritmo ordenado e adequado às atividades.

 

Alguns desejos das crianças
“Queremos salas com cores divertidas.”
“Silêncio para trabalhar e brincar tranquilos.”
“Uma professora bem feliz, dando beijos e abraços.”
“Sair para brincar na chuva com botas de borracha.”
“Que a sala tenha mesas redondas, iPads e um botão para abrir a porta.”
“Ter armário para guardar nossas coisas.”
“Um quadro digital para muitas crianças tocarem ao mesmo tempo.”
“Uma cama elástica no pátio e um gatinho em cada sala.”
Mais informações sobre o projeto em: http://h2020.fje.edu

Autor

Mariana Dornelles, de Barcelona


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