NOTÍCIA
Na linguagem das crianças, percebemos a linguagem humana emergir de novo. É como se tivéssemos uma nova chance
Publicado em 28/02/2014
A fonte da eterna juventude está em não perder contato com a infância. Ser criança é manter-se aberto para as descobertas. Na linguagem das crianças, percebemos a linguagem humana emergir de novo. É como se tivéssemos uma nova chance de ver e aprender. O sonho da espontaneidade se torna possível outra vez.
Há quem anote e guarde frases divertidas (e enigmáticas) de filhos e alunos pequenos, de sobrinhos e netos, na esperança de captar surpresas, graça, valores e verdades. O médico e escritor Pedro Bloch (que neste ano faria 100 anos) reuniu em seu Dicionário de humor infantil (Ediouro, 1997) dezenas de definições que ouvia, na maioria, de crianças em seu consultório.
Estes verbetes abarcam os mais diversos campos da experiência, e nos ensinam a ver o mundo por outros ângulos, ângulos ainda não “adulterados” pela nossa adultice.
Por exemplo, como uma criança definiu a boca?
BOCA – É a garagem da língua.
A boca é vista como um lugar de abrigo e descanso. E a língua é interpretada como veículo que nos leva para tantos lugares. O pensamento confundente das crianças (que é o dos poetas) mistura para discernir. Misturando boca com garagem, e língua com automóvel, descubro como descansar desse trânsito intenso das palavras.
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HORA – A melhor hora da escola é a hora da saída.
Sem papas na língua, a criança diz o que pensa. Não disfarça. Não aprendeu (ainda) que é preciso bajular a instituição, o poder. Sua liberdade é mais importante. E as horas são contadas, não pelo relógio de todos, mas pelo tempo pessoal. A hora não tem sessenta minutos. A hora certa é sempre a hora mais desejada.
Segundo o pensamento cartesiano, a infância é o lugar do irracional e foi por isso que muito se falou para as crianças que “em boca fechada não entra mosquito”, que “o silêncio é de ouro”, e que tal ou qual hora não é hora de falar. Mas toda criança não vê a hora de botar a boca no mundo e fazer anacolutos sem medo:
JARDIM ZOOLÓGICO – O bicho que eu mais gostei, no jardim zoológico, foi o vendedor de sorvete.
No meio do raciocínio sempre pode aparecer uma ideia melhor. A sabedoria não se envergonha de tomar outro rumo. E quem disse que o vendedor de sorvete não é um bicho homem que sabe tornar o jardim mais aprazível?
Outro dicionário
O escritor e professor colombiano Javier Naranjo publicou em 2013 um trabalho semelhante ao de Pedro Bloch. Sua Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças (Editora Foz) traz um rio de poesia, no qual as crianças entremostram histórias de alegria e sofrimento. O mérito de Naranjo foi não concordar com a etimologia de infância (infans no latim é o que não fala). Dando espaço para a palavra infantil, abriu janelas para nosso aprendizado:
GUERRA – É um jogo que os meninos de hoje jogam.
A autora desse verbete é uma menina de 9 anos. Sem ter consciência, ela soube descobrir na guerra uma brincadeira (de muito mau gosto) da qual até meninos participam. Brincadeira mortal.
SOLIDÃO – Estar só com ninguém.
Não é genial? A verdadeira solidão nos leva a encontrar todas as pessoas, mesmo fisicamente ausentes. No pensamento e na memória, encontramos a humanidade. Mas esse estar só com ninguém é quando a solidão se torna isolamento. E aí já não há salvação.
INFERNO – Para mim, inferno é quando uma pessoa diz pra outra: vai pro inferno.
Um teólogo não diria melhor. Já se vive num inferno, por antecipação, quando as relações humanas se tornam infernais.
CORPO – É um rosto que se mexe, ri, entristece e se sente sozinho.
No rosto se concentra a atenção dessa criança. Ela busca a vida, os sentimento, a lágrima, as reações, a dor e a alegria de alguém.
COLÉGIO – Casa cheia de mesas e cadeiras chatas.
Para esta criança, o colégio não tem espaço para andar. Tudo são lugares para os imóveis. Para a imobilização.
AUSÊNCIA – É quando eu vou morrer.
A criança personaliza o abstrato. Suas definições são interessantes e interessadas. Toda pedagogia deveria levar em conta que nenhum conteúdo vale por si mesmo, na visão infantil. Se não for algo para ela, com ela e por ela… para que serve?
ADULTO – Pessoa que em toda coisa que fala, vem primeiro ela.
Precisa explicar?
PROFESSOR – Pessoa que não se cansa de copiar.
A escola repetitiva ainda se repete. Muitas crianças (e não só na Colômbia) já se cansaram de ver o professor copiar do livro para que elas copiem do professor e recopiem nos exames o que já copiaram. Mais do que uma definição, este verbete é uma denúncia!
*Gabriel Perissé é doutor em Filosofia da Educação(USP) e pesquisador do Núcleo Pensamento eCriatividade (NPC) – www.perisse.com.br