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As lutas, a escola e a política

Enquanto milhares de pessoas vão às ruas reivindicar direitos ou expressar insatisfações, professores do ensino básico convivem com o desafio de explicar o atual momento do Brasil em salas de aula pouco habituadas a isso, pela própria estrutura educacional, e questionam se é papel da escola tratar de temas políticos

Publicado em 15/07/2013

por Camila Ploennes

Gustavo Morita
Manifestantes em frente à Catedral da Sé, em São Paulo, durante o sexto ato contra o aumento das passagens

Em uma escola estadual próxima a Campinas, no interior de São Paulo, os alunos estão reagindo de diferentes maneiras às informações publicadas sobre as manifestações que acontecem em diversas cidades do país desde o início de junho. Os mais novos, na faixa dos 10 anos, constantemente demonstram sentir medo do que acompanham pela televisão. Já entre os estudantes do ensino médio não há consenso: enquanto parte da sala faz perguntas procurando entender o fenômeno corrente nas ruas, alguns jovens verbalizam vontade de participar dos protestos sem buscar compreendê-los – em certos casos, falam em praticar vandalismo. “É compreensível que reajam assim quando se fala disso dentro da escola, porque as aulas não abordam temas de política e da nossa história recente. Sempre tivemos de seguir um conteúdo predeterminado pela Secretaria e, com vistas a avaliações, somos cobrados a ensinar o que está no livro”, afirma o professor de história J.V.I., que pediu para não ser identificado. Ele ficou surpreso em meados do mês passado, quando teve de assinar um documento da Diretoria de Ensino de Mogi Mirim determinando a obrigatoriedade de os docentes abordarem o assunto das manifestações durante as aulas. “Do nada, os professores se tornaram responsáveis por um trabalho que não estavam destinados a fazer até poucos dias antes”, diz.

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Enquanto isso, os protestos, que começaram com uma agenda de esquerda proposta pelo Movimento Passe Livre, reivindicando o direito à cidade por meio do pedido da redução do preço da passagem do transporte coletivo, seguem caminhos inesperados, suscetíveis a mudanças de todo tipo, sobretudo dos motes de reivindicação, como se viu após a revogação do aumento da tarifa em São Paulo, quando outras causas continuaram levando pessoas às ruas pelos mais variados interesses. Pela cidade, o que se viu é em parte semelhante ao que o docente encontra na escola: diversas motivações e expectativas em relação aos atos – algumas delas sem reflexão sobre o que as demandas significam para a atual conjuntura político-social e para a história recente do Brasil. Afinal, o que explica a violência contra manifestantes que integram partidos políticos como expressão de repúdio à existência dessas instituições, se o país viveu 21 anos sob uma ditadura militar baseada exatamente na extinção dos partidos e na cassação de congressistas?

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A resposta parece abarcar mais do que a “apropriação do movimento social pela direita conservadora incentivada pela grande mídia”, tema tão debatido nas redes sociais. Isso porque, do público heterogêneo que tem saído às ruas, nem todos os que levam cartazes antipartidários pedindo o fim do Congresso ou impeachments declaram-se “de direita” ou estão cientes de bradarem por medidas alinhadas a uma ideologia ou mesmo antidemocráticas. Assim, a discussão passa pela crise de representatividade dos partidos e chega à escola, por onde muitos estudantes passaram e ainda passam sem serem apresentados a conceitos como democracia e direitos sociais de forma contextualizada com sua realidade de cidadãos.

A pergunta recorrente entre professores e pesquisadores é: é papel da escola tratar de assuntos relacionados à política? “Nunca existiu a ideia no Brasil de que a educação deveria ser uma educação política”, afirma Marília Moschkovich, professora de sociologia da rede particular de Valinhos (SP) e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Citando o professor Evaldo Amaro Vieira, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), Marília explica que o sistema de educação brasileiro descende da tradição dos jesuítas lusitanos, baseada na repetição de conteúdos, diferentemente da tradição dos jesuítas espanhóis, que incentivavam um ensino ligado à arte, à literatura, ao pensamento mais crítico e autoral.

A professora acrescenta que, se num primeiro momento a educação pública no Brasil foi concebida como serviço prestado pelo Estado às elites, a partir de 1961 ela começou a se expandir para as massas. “Mas o objetivo não era informar essas pessoas; nós estávamos bem perto de uma ditadura militar, o objetivo era formá-las para o trabalho, mesmo para os cargos menos qualificados. O interesse é social por um lado, mas também existe um interesse econômico nessa educação de massas.”

Além dessa herança, há outro fator que afasta temas sobre política da escola: o currículo tal como ele é organizado hoje. “Não dá tempo de chegar até a história recente. A reflexão que emerge agora é como contemplar isso numa reestruturação curricular”, reflete o professor da Feusp Romualdo Portela, que propõe pensar um currículo que dialogue com as atualidades. “Tratar a história de uma forma linear causa essa confusão na hora de analisar movimentos mais complexos como esse, que têm um conjunto de causas. Como relações desiguais, elas se manifestam de formas diferentes”, afirma.

O sociólogo Simon Schwartzman, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade do Rio de Janeiro (IETS), acredita que a educação política não é responsabilidade da escola, embora avalie que é uma falta importante o fato de nem todas as instituições ensinarem as informações mais básicas, tais como: de que forma se organiza o governo, o que é o parlamento, para que servem os partidos políticos e o que é a Constituição.”É difícil imaginar que a escola vai preparar as pessoas politicamente. Acho que ela vai ensinar basicamente as pessoas a ler, escrever e saber os conceitos quantitativos básicos. Temos um sistema educacional muito ruim e isso cria uma situação geral de despreparo”, opina.

O assunto tem sido objeto de estudos acadêmicos recentes. É o caso da dissertação de mestrado Educação política como standard mínimo vital do direito à educação na Constituição de 1988, defendida em 2012 por Claudia Maria Las Casas, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Sua análise é a de que a Educação Básica tem o dever de oferecer educação para o exercício da cidadania assegurado pela Constituição, do mesmo jeito que tem o dever de preparar o cidadão para o trabalho. “Nesse sentido, apontamos que uma educação formal intencional, que se perfaça por um processo dialógico, deva ser ministrada como uma disciplina, que seja interdependente com as demais, desde a mais tenra idade, para que o brasileiro enraíze e se habitue com a Democracia Social, tendo por fundamento dessa matéria o Texto Constitucional de 1988”, escreve a autora. Ela avalia que essa obrigação é comprovada pelo artigo 205, sobre a Educação, e pelo artigo 64 dos Atos das Disposições Transitórias (leia a transcrição dos artigos no box).

Para o professor Romualdo Portela, é papel da escola, mas não somente dela, incentivar práticas democráticas. “Ela pode estimular a cidadania por meio do incentivo à participação dos jovens no grêmio, por exemplo. Mas não diria que é uma responsabilidade exclusiva da escola. Isso se dá por outras instituições, como partidos políticos e clubes”, afirma.

Esta não é a primeira vez na história do país que um acontecimento político mexe com a estrutura hermética da instituição escolar. Professora de história por formação, Maria do Pilar Lacerda, que foi secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (2007-2012), presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e secretária municipal de Educação de Belo Horizonte, conta uma experiência de seus tempos de docência. A morte do presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, três meses depois de eleito por voto indireto e antes mesmo que pudesse tomar posse, resultou na transferência do cargo ao então vice José Sarney. Naquele mês de abril, há 28 anos, Pilar viu-se diante do desafio de explicar de uma só vez aos seus alunos o momento de abertura política que o Brasil atravessava. “Levei isso para a escola convidando, por exemplo, um jurista para explicar por que a posse de Sarney estava dentro da legalidade, mas foi uma atividade completamente fora da curva”, lembra. “Hoje entro nas nossas escolas e vejo que elas não mudaram nada desde então, muitas vezes a responsabilidade recai sobre o professor sem que ele tenha sido preparado, formado para aquilo”, avalia.

A sociologia no ensino médio
Para Marília Moschkovich, ao menos no ensino médio há um alento rumo a uma educação que aborde temas políticos dentro da escola. “Desde que eu comecei a dar aula para eles eu fico pensando em como a sociologia nessa etapa é importante. Eu trabalho com livro didático e, mesmo que o professor aplique de uma forma muito ruim, pelo menos essa molecada vai ter escutado falar em Estado, em violência policial e em desigualdade, que são termos que ajudam a entender o atual contexto”, afirma a professora. O ensino de sociologia é obrigatório para o ensino médio desde 2008.

Ela avalia que sua geração não teve contato com essa disciplina e que, na escola, ser ensinado a entender a realidade era algo que dependia diretamente do perfil docente. “Se você tivesse a sorte de ter professores de história que abordavam a história por uma perspectiva mais social, era possível compreender um pouco mais a sociedade. Se fosse alguém um pouco mais conteudista, não. A sociologia no ensino médio serve para o aluno perceber o que está acontecendo no mundo à volta dele e o professor tem de fazer essa ponte entre a teoria que leva a essa compreensão e a realidade que esses estudantes estão vivendo”, analisa.

Hoje, na rede pública, parece haver um ponto de partida, embora a recente experiência já tenha apontado que talvez seja necessária uma reflexão permanente sobre a abordagem. O professor de história J.V.I, que também leciona sociologia para o ensino médio em uma escola estadual de São Paulo, afirma que o currículo da disciplina é abrangente e ao longo dos três anos mescla conceitos de antropologia e ciência política. “No primeiro ano, ele é mais voltado à sociologia, com noções como identidade cultural, senso comum, formação do conhecimento sociológico e papel social; no segundo ano, tem foco maior em antropologia, com conceitos de cultura, cultura de massa, indústria cultural; já no terceiro eles vêm mais ciência política – é quando aprendem sobre movimentos sociais e partidos”, explica.

Na rede particular, Marília conta uma experiência de mais flexibilidade para discussões e espaço para a autonomia do professor no preparo da aula, o que pode ter efeitos diferentes a depender do perfil de cada docente. “O currículo de sociologia não é delimitado, não tem uma descrição de um conteúdo obrigatório. Isso é muito bom por um lado porque é possível adaptar o currículo conforme a turma, o que é a situação ideal, mas é muito ruim ao mesmo tempo porque há professores que não vão fazer isso por questões que extravasam a do currículo.”

Para a socióloga, a discussão vai além da formação e passa pela valorização da carreira e pelas condições de trabalho do professor, que não raramente tem contrato eventual ou temporário. “Existe ainda a ideia de que é preciso abordar um conteúdo, mas a forma de ensiná-lo varia de escola para escola e os sociólogos ”bordieusianos” falam que ela varia de acordo com a classe social dos alunos e o que se tem de projeto na sociedade para aquela classe social dos estudantes. O currículo em si é como se fosse um ponto de partida, mas a diferença está mesmo na forma como ele será abordado, na forma como a escola entende os seus próprios alunos e na forma como o professor em sala de aula entende seus próprios alunos”, acrescenta.

A discussão da representatividade
“Quando o general Medici subiu a rampa do Planalto, o regime havia banido da vida pública todos os políticos que em 1964 aspiravam à Presidência da República. Podia parecer que se perdiam os líderes mas preservavam-se os partidos, no entanto eles foram extintos em 1965, substituídos por um sistema bipartidário rígido nas votações parlamentares e frouxo na coesão das bases. Podia parecer também que, mesmo sem lideranças e sem partidos, preservavam-se as instituições. Fechado duas vezes, o Congresso teve cassados 281 parlamentares.” A passagem de A ditadura escancarada, do jornalista Elio Gaspari, elucida em um único parágrafo o que o Golpe Militar fez de fato e o que parecia fazer em relação aos partidos e ao Congresso Nacional. Hoje, alvos de rechaço de muitos manifestantes pelo Brasil, essas instituições, da forma como se configuram e atuam, estão em constante debate na sociedade, sobretudo após o anúncio do plebiscito da Reforma Política proposto pela presidente Dilma Rousseff.

Para o professor da Feusp Romualdo Portela, um aspecto interessante das manifestações é o despertar de uma geração que não tem um histórico de participação. “Acho que os movimentos são profundamente educativos. O problema é compartilhar o conhecimento com todo mundo que não tinha esse histórico”, aponta. “Não dá para fazer democracia direta. Se você não tiver partidos políticos, não há vida democrática. Entendo que os partidos da ordem não estão conseguindo reverberar uma grande parcela da população e que esses partidos precisam se remodelar, mas o correto seria pensar em um movimento suprapartidário, e não apartidário. Acho que as pessoas querem mostrar que não são massa de manobra de partidos, mas isso não quer dizer que você possa fazer esses movimentos sem partido”, opina.

Portela analisa que a inércia política no período anterior aos protestos está mais ligada ao clima político da sociedade do que à escola. Para ele, o Movimento Passe Livre, que já existia, e num determinado momento conseguiu engajar muitas pessoas, catalisou uma insatisfação geral da sociedade e serviu de canal para movimentos bastante difusos, inclusive até contraditórios. “A baixa participação no período anterior se deve ao fato de que as pessoas que ocupavam as ruas antes agora estão no governo e isso acabou diminuindo a ação de grupos sindicais, por exemplo, porque eles viraram governistas”, afirma.

O sociólogo Simon Schwartzman, do IETS, questiona qual seria a alternativa ao sistema representativo. “Como o nosso sistema representativo funciona mal, as pessoas querem acabar com tudo isso. E quando você não tem nenhum sistema representativo fica pior do que você está. Nós tivemos um milhão de pessoas na rua e temos 70 milhões de eleitores. O que pesa mais? O problema da representação é muito sério e nós temos de melhorar, de criar um sistema partidário em que as pessoas se sintam representadas, em que a pessoa que eu coloquei lá no Congresso defenda meus interesses e diga o que está fazendo”, expõe.

Constituição da República Federativa do Brasil

Trechos do texto constitucional que embasaram a pesquisa “Educação política como standard mínimo vital do direito à educação na Constituição de 1988”. A autora Claudia Maria Las Casas avalia que o artigo comprova a obrigação de a escola oferecer educação para o exercício da cidadania

Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto
Seção I – Da Educação
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Atos das Disposições Transitórias
Art. 64. A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas  pelo poder público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil

Atualizada em 16/07 – às 17:30

Autor

Camila Ploennes


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