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Se alguém me perguntasse…”o que devemos ler?”, eu responderia com uma palavra só: “
tudo“. Devemos ler tudo. No entanto, diante da evidente impossibilidade de realizar tal façanha, substitui-se a pergunta: “o que podemos ler?”, para a qual existem muitas respostas diferentes.
Mário de Andrade, na década de 1940, recomendava ao jovem Fernando Sabino que adotasse o critério da proximidade. Leiamos os autores do nosso tempo, do nosso país, do nosso continente, os autores que falam de temas que nos são familiares. Com o passar do tempo, leiamos autores cada vez mais antigos, de países cada vez mais distantes, sobre temas cada vez mais bizarros.
Outro critério é o da leitura da moda. Leiamos o que todos estão lendo. O best-seller está aí, ao alcance da mão, fácil de adquirir e provavelmente fácil de assimilar. Se tivermos consciência de que isto é apenas um começo, e que os melhores livros ainda estão por vir, e por ler, o título mais comprado agora será uma porta aberta para, no futuro, entrarmos em contato com outros títulos cuja qualidade não se mede, necessariamente, pelo número de exemplares vendidos.
Um terceiro critério é pedir conselho a quem entende e gosta de leitura. Será sempre um conselho marcado pelas preferências do aconselhador, não há dúvida, mas serão sugestões abalizadas que podem descortinar horizontes. Sugestões nós pedimos a alguém, face a face – a um professor, um bibliotecário, um crítico literário, um livreiro, um amigo, mas também a algum autor que nos fale sobre leitura.
Nesse aspecto, existem autores inspiradores. Especializaram-se em falar sobre leitura e acabam indicando leituras. Um deles (um dos maiores que o Brasil conheceu) chama-se Otto Maria Carpeaux (1900-1978), que escreveu a magnífica
História da literatura ocidental, obra republicada pela Editora Leya, em quatro volumes, com um total de quase 2.900 páginas. A erudição vem aos jorros, numa linguagem que não sufoca o leitor. O autor era leitor de vastos horizontes e generosa inteligência. Ler essa História de Carpeaux, anotando autores e títulos que ele menciona em profusão, é uma forma concreta de compor um roteiro de leitura para a vida inteira!
Autores autorizados
Acreditando que Carpeaux era um leitor especial, criterioso, podemos buscar, em suas observações históricas, autores autorizados pela própria história, pelo papel que desempenharam na literatura ocidental, por sua originalidade e seu talento.
Por exemplo: quando Carpeaux escreve, referindo-se ao escritor cubano Alejo Carpentier, que “ele é um mestre do romance chamado ‘poemático’ e um dos escritores mais significativos do século” (do século 20), não há por que não incluí-lo na minha lista. Carpeaux, numa nota de rodapé, cita quatro títulos –
O reino deste mundo (1947),
Os passos perdidos (1953),
O cerco (1957) e
O século das luzes (1958) -, e, prestemos atenção ao detalhe, na ordem cronológica de publicação.
Carpeaux tinha autoridade para autorizar autores. Ele próprio era um grande autor, na medida em que sabia apresentar um número ingente de informações com a naturalidade de quem está conversando com grande simplicidade, muito distante de qualquer pose didática. Sem perder o rigor da análise, contudo, produzia formulações sintéticas definitivas e convincentes.
Essas formulações nos provocam a curiosidade, despertam sede e fome de leitura, geram a necessidade de conhecer os autores e obras apresentados:
Balzac é a figura mais importante da transição entre o romantismo
e o realismo-naturalismo:
representa o advento da burguesia.
Michelet é um escritor de primeira ordem, um dos maiores da literatura francesa.
Em James Joyce, as duas grandes correntes da literatura moderna, o naturalismo e o simbolismo, aparecem numa síntese nova. […] Ulisses é uma obra-prima solitária, inconfundível como o seu autor.
Cholokhov é o maior
nome da literatura soviética.
São dezenas e dezenas de afirmações desse tipo, frases assertivas, frases convidativas. A fome e a sede hão de aumentar até se tornarem insuportáveis. Teremos de deixar de lado os volumes da História de Carpeaux e correr até a biblioteca mais próxima, à livraria, à loja virtual de um site. E satisfazer, na leitura, esta vontade de saborear o que o historiador comentou e, com este precioso comentário, indiretamente recomendou.
Educação para a leitura
A estratégia educacional de Carpeaux consiste em mostrar como os escritores e sua produção literária são relevantes para a vida humana. Literatura não é algo que flutua sobre a realidade social. Ao contrário, dialoga o tempo todo com as tramas diplomáticas, as experimentações da arte e da ciência, os conflitos ideológicos e teológicos, com os avanços e retrocessos sociais. Os anseios e receios dos povos se traduzem nos romances, nos poemas, nas peças teatrais, nos tratados filosóficos, nas palavras, enfim, dos escritores, sejam eles brilhantes ou medíocres, mais conscientes ou menos, de que escrever já configura, em si mesmo, engajamento.
Na medida em que descobrimos os nexos entre literatura, história humana e psicologia individual, torna-se imperativo pessoal conhecer (e reconhecer) autores como Dante, Cervantes, Shakespeare, Montaigne, Proust e tantos outros. Não se trata de um capricho, mas de necessidade cultural a ser assumida. Mais ainda. Para nós, professores, a leitura é excelente caminho de crescimento humano e autonomia intelectual, condições imprescindíveis para o aperfeiçoamento profissional.
Carpeaux nos oferece o conhecido e o desconhecido. Este é um dos seus maiores atrativos. Faz-nos lembrar nomes consagrados como Homero, Goethe e Camões, Milton, Pascal, Camus, Baudelaire e Borges, mas também nos revela autores como o poeta holandês Heiman Dullaert (século 17), o poeta espanhol Fernando de Herrera (século 16) ou o poeta medieval Adam de St. Victor (século 12).
Educando-nos para a leitura constante e variada, Carpeaux atua, enfim, sobre a formação literária de nossos alunos. Se é verdade que os alunos se alimentam daquilo que o professor digere, como dizia Karl Kraus, usufruirmos de um nutritivo cardápio literário como o que foi elaborado por Otto Maria Carpeaux nos ajuda a substanciar as nossas aulas.
Dispensável dizer que a fome e a sede de leitura retornarão sempre, cada vez mais intensas. E que será necessário, portanto, consultarmos obras como a História da literatura ocidental para rastrear novas fontes e referências.
*Gabriel Perissé (
www.perisse.com.br) é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador do NPC – Núcleo Pensamento e Criatividade