NOTÍCIA

Ensino Fundamental

A chegada dos imigrantes

Adaptação de alunos estrangeiros ao contexto brasileiro passa pelo apoio da família e da escola, para que barreiras linguísticas e emocionais sejam superadas


De um lado, o aluno boliviano que, por medo de repressão dos colegas brasileiros, tenta passar despercebido em sala de aula. Do outro, o envergonhado estudante japonês não consegue se comunicar em português. Entre eles, o educador, que tateia em busca das melhores maneiras de, ao mesmo tempo, garantir aprendizagem e inserção social. Tais descrições compõem um retrato de como são recebidos os alunos estrangeiros no sistema educacional brasileiro. Eles estão cada vez mais presentes no cotidiano escolar, tanto público como privado. Nos últimos três anos, o Censo Escolar registrou um aumento de 45% no número de matrículas de alunos estrangeiros. Em 2010, as escolas matricularam 41 mil estudantes (7% do total de matrículas da Educação Básica), contra 28 mil em 2007. Desse total, 23.964 estavam na rede pública e 17.952 na rede privada.

O primeiro empecilho enfrentado por esse contingente de crianças e jovens para se adaptar ao país é justamente o idioma: é difícil se expressar em língua portuguesa. Mas há outros obstáculos. Além da natural saudade da pátria de origem, há casos de estranhamento dos hábitos comportamentais, inadequações curriculares e preconceitos diversos. Na prática, é possível encontrar pais estrangeiros que chegam com uma visão estereotipada do país. Alunos brasileiros também recebem com gozações, grosserias e até violência os colegas recém-chegados. E há também o mecanismo da repetência, algo que pais provenientes de nações em que ela simplesmente não existe custam a compreender e aceitar.

Cibele Lucena de Almeida, do Núcleo de Educação da lnfância da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Ufrn), aponta que, além da insegurança, os alunos estrangeiros sofrem uma “necessidade de pertencimento”, decorrente do desejo de fazer parte do novo grupo e compreender sua cultura, sem abandonar os próprios costumes e valores. Ela estudou o ensino da língua portuguesa a estudantes estrangeiros e acredita que a família tem papel fundamental no aprendizado. “A parceria entre a escola e a família contribui para o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo dos alunos. Todavia, a proximidade entre essas duas instituições não é uma realidade comum a todas as escolas do Brasil”, afirma.

Fabiana Litrenta, coordenadora do Fundamental 1, e Roberta Deliberato, coordenadora de educação infantil, ambas da Escola Internacional de Alphaville, que promove a formação bilíngue de seus alunos (25% deles imigrantes) em inglês e português, confirmam que o “acolhimento das famílias” é decisivo para esses estudantes. No sentido inverso, pode-se dizer que a falta de atenção aos pais por parte do estabelecimento de ensino é capaz de produzir verdadeiros desastres educativos. O japonês Rafael Naoki Kametani, de 10 anos, é vítima desse tipo de negligência. No caso, do sistema educacional nipônico.

Rafael é filho de dekasseguis (brasileiros residentes no Japão). Cresceu na cidade de Yokohoma e estudou em escola de período integral. Com o passar dos anos, convivendo mais com nipônicos do que com brasileiros, esqueceu-se do português que, até os quatro anos, vinha desenvolvendo. Mesmo com os amigos brasileiros só conversava em japonês. E aos próprios pais já não se dirigia mais em português, nem entendia as frases ditas por eles. Rafael aprendeu tão bem o japonês que se expressava na língua melhor que seus pais. A família chegou à beira da incomunicabilidade total. “Eu tinha vergonha de falar japonês”, admite Andrea Tieni Kametani, a mãe. O marido também não se saía muito melhor. Outras famílias de dekasseguis viviam situações semelhantes. A solução foi, literalmente, dar meia-volta. O terremoto que abalou o país em março e a recessão econômica foram a gota d”água. O Japão estava, de certa forma, tirando Rafael de seus pais. Era preciso tirar Rafael do Japão. Contra a sua própria vontade, fazê-lo estudante estrangeiro no Brasil.

Busca de proteção
As notícias que Andrea recebia sobre educação de estrangeiros não eram encorajadoras. Em maio deste ano, ganhou repercussão o caso de quatro universitários haitianos vindos para intercâmbio na Escola Nacional Florestan Fernandes, mantida pelo MST, em Guararema (SP), que terminaram em um assentamento no sul da Bahia, do qual saíram se queixando de quatorze dias sem água potável, cinco dias sem comida e cinco meses sem nenhum estudo.

Antes, em setembro de 2010, o jornal Folha de S.Paulo relatou casos de agressão a alunos estrangeiros na EE Padre Anchieta, em São Paulo. Os estudantes, principalmente os bolivianos, teriam de dar dinheiro aos brasileiros regularmente, para não serem surrados, o que acabava acontecendo muitas vezes. A reportagem de Educação tentou saber da direção da escola se foram tomadas providências, de lá para cá. Os funcionários dizem que não são autorizados a falar com jornalistas. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por meio de sua assessoria de imprensa, comunicou que não é possível realizar entrevistas no colégio atualmente. Alegou que, como se trata de uma instituição constantemente procurada por repórteres, convém evitar a superexposição do estabelecimento.

Profissionais de educação que não quiseram se identificar apontam que a Padre Anchieta, localizada no Brás, bairro caracterizado por forte presença de bolivianos, é afetada por problemas graves relacionados à imigração no país. Organizações de aliciamento de trabalhadores estrangeiros, exploração de mão de obra em regime de semiescravidão, comércio ilegal, falta de documentação, risco de deportação, ameaça à vida: tudo isso compõe o ambiente em que o colégio está inserido e tem reflexo, claro, na conduta de seus alunos e funcionários.

Um estudo sobre a presença de bolivianos nas escolas públicas de São Paulo, realizado por Giovanna Modé, mestre em sociologia da educação pela Faculdade de Educação da USP (Feusp), mostra como alguns aspectos da condição do imigrante e da dinâmica do entorno afetam o ambiente escolar. Segundo a pesquisa, são notáveis o silêncio e a timidez desses estudantes, que passam muitas vezes por invisíveis. Para ela, a invisibilidade tem duas causas: a vontade dos próprios imigrantes – alguns em situação ilegal -, que buscam se proteger e se resguardar; e a tendência das pessoas de não os querer enxergar, apesar de conviverem no mesmo bairro ou na mesma escola.

A discrição e o esforço por invisibilidade acabam chegando à sala de aula. A pesquisadora atenta para o fato de a própria comunidade escolar muitas vezes não percebê-los: “Para a política pública educativa, isso é complicado porque, quando você não vê o estudante, não desenvolve o que a especificidade desse aluno requer. Há professores que só perceberam que os alunos não conheciam o português no final do curso. Com diretores que não sabiam qual idioma o aluno falava. O desconhecimento é um grande entrave”, conclui.

Saídas
Uma forma encontrada por alguns grupos de imigrantes para protegerem-se, evitando os riscos da inserção em um meio cultural potencialmente perigoso, é a adotada por parte da comunidade coreana de São Paulo: constituir um estabelecimento de ensino voltado diretamente às necessidades de seus estudantes. É o caso do Polilogos, na região central da capital paulista, que atende pais que já chegam ao Brasil na expectativa de ver os filhos diplomados pela USP, preferencialmente em direito, medicina ou engenharia. A diretora Maria Thereza Costa aponta os inconvenientes pedagógicos de uma instituição educativa brasileira em que os brasileiros são poucos e encontram-se mais entre os funcionários. “Seria melhor ter um número maior de brasileiros”, admite. “Não há também muita interação com outras escolas, o que não é bom. Falta envolvimento com a sociedade brasileira.”

O Polilogos, na verdade, não é uma escola: são duas numa só. Dois períodos de estudo, dois sistemas de ensino diferentes. De manhã, é um colégio brasileiro para coreanos, de acordo com as disciplinas e conteúdos estabelecidos no Brasil. À tarde, é um estabelecimento coreano, adequado às exigências programáticas do país asiático. Assim, a ênfase na preparação para o vestibular é combinada com a preservação da cultura coreana. Tanto num período como noutro, vigora o padrão educacional coreano, que consiste, segundo a diretora, em sincero respeito pela escola, reconhecimento da autoridade do professor, admiração pelo seu trabalho e necessidade de o docente tomar a iniciativa, “buscar o aluno, ser acolhedor”, na definição de Maria Thereza.

Os brasileiros são dispensados das aulas da tarde, mas podem acompanhá-las, caso queiram. Gabriel Coccetrone da Silva, do 9° ano, sem qualquer parentesco ou ligação cultural com a Coreia, optou por seguir o programa coreano no período da tarde. Segundo ele, para comunicar-se melhor com seus colegas asiáticos. Gabriel destaca a diferença da dinâmica em classe, mais austera, em comparação com outra escola particular, de alunos brasileiros, em que estudou antes. Gosta das aulas, apesar da rigidez dos professores, e percebe que os alunos respeitam a instituição.

Aprender o português
De volta ao Brasil no primeiro semestre deste ano, Andrea Kametani fez algo que jamais imaginou: matriculou seu filho Rafael em um colégio público. Embora tenha condição de arcar com os custos de uma instituição particular e existam escolas especializadas no atendimento a japoneses, preferiu matriculá-lo na EE Júlia Macedo Pantoja, por  recomendação de outras famílias japonesas. Passaram-se poucos meses, mas agora não é raro Rafael puxar conversa com a mãe em português. Ou, pelo menos, em uma tentativa de português. E quase sempre compreende o que ela diz, embora tenha, como não poderia deixar de ser, grande dificuldade ainda para falar o idioma dos pais.

Aliás, fala mais em português com a mãe do que com a professora e os colegas de escola. Tem vergonha. Sobretudo do rotacismo, o hábito de empregar a letra “r” no lugar do “l”, comum nos japoneses, cuja língua não possui nenhum equivalente para o som do “l”. Os alunos brasileiros fazem piada a cada troca de letra, inibindo ainda mais o colega recém-chegado. Laís Scharf, diretora do colégio, percebe que “ele está com uma barreira emocional para aprender português”. Rafael não é o único estrangeiro na escola. Há outros seis, todos japoneses e matriculados no Fundamental 1. Na medida do possível, são colocados juntos. Têm aula de reforço duas vezes por semana. Andrea diz que o filho, cursando o 4° ano, gosta do colégio e fez amigos, apesar das dificuldades. As salas da Júlia Pantoja têm, em média, quarenta alunos. As professoras Anny Volpi e Cibele Erdmann (na turma dela está o Rafael) passam apuros para dar aula a japoneses, tarefa para a qual não se sentem preparadas. Elas têm em suas salas alunos que não entendem o que elas falam e com os quais só é possível se comunicar, em um primeiro momento, por meio de desenhos e linguagem corporal. Guardadas as proporções, método semelhante é usado na Escola Internacional de Alphaville na alfabetização de alunos chineses, que conseguem progressos em seis meses, de acordo com Fabiana Litrenta e Roberta Deliberato.

Caminhos
Elas entendem que o professor tem de ter paciência no processo de alfabetização em português, “aceitar o idioma de origem do aluno, não impor uma língua a qualquer custo”. Maria Thereza, do Polilogos, diz que demora no mínimo dois anos para que se possa dizer que o coreano aprendeu efetivamente o português. Idioma à parte, Roberta Deliberato chama a atenção para um problema muitas vezes deixado de lado pelas escolas no trato com estrangeiros: o estranhamento afetivo. O caso mais grave que ela presenciou foi o de uma menina argentina. Vinda de um país vizinho, ela passou meses desorientada emocionalmente, chegando inclusive a manifestar o desconforto com constipação e outros sintomas físicos. Era como se padecesse de um jet lag interminável. Roberta tira da situação uma lição que o professor brasileiro muitas vezes tem dificuldade de aprender: “não achar que o estrangeiro tem de se apaixonar pelo Brasil”. Que vai se abrasileirar inevitavelmente. Hospitalidade, acolhimento, não deixar ninguém cair na invisibilidade são ações importantes. Mas não garantem que, no fim, a escola irá constatar o que Maria Thereza diz perceber nitidamente em seus alunos coreanos: “eles têm medo de se envolver, mas gostam do contato e não querem ir embora do Brasil”.

Educação garantida
No Brasil, todo imigrante tem direito a estudar

Praticamente qualquer aluno estrangeiro consegue matricular-se numa escola brasileira, seja imigrante legal ou ilegal. “Eu recebo primeiro, para ver a documentação depois”, explica Maria Thereza Costa, diretora do Polilogos. Dá respaldo a essa prática a legislação brasileira em relação ao imigrante, “uma interpretação mais humana”, comparada à de outros países, na visão de Ives Gandra Martins, doutor em direito pela Universidade Mackenzie, professor e autor de dezenas de livros. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), o Estatuto da Criança e do Adolescente e diversos acordos internacionais assinados pelo governo brasileiro garantem o direito à educação ao estudante vindo de outro país, independentemente de sua situação no país ser irregular. O Estatuto do Estrangeiro, de 1980, coloca a regularidade do registro do imigrante como pré-requisito para a matrícula e obriga as escolas a comunicarem ao Ministério da Justiça os dados dos alunos, mas na prática é considerado letra morta. Em 2008, o Polilogos, por exemplo, encaminhou ofício à Secretaria de Estado da Educação, para não ser obrigado a informar o RG e o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros) de seus alunos. Obteve parecer favorável do Conselho Estadual de Educação. Para Gandra Martins, a LDB e o Estatuto da Criança e do Adolescente complementam, mas não revogam o Estatuto do Estrangeiro, diferentemente do que muitas vezes é entendido. Assim, embora a informação dos dados dos alunos não seja precondição para a matrícula, é fundamental para o aprimoramento da educação no Brasil. “O governo não pode deixar de conhecer quem é formado no país”, defende.

Autor

Cassiano José Pimentel e Júlia Tami


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