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Entrevistas

O poder e o sorriso

Biógrafo de Getúlio Vargas, o historiador Boris Fausto credita boa dose de responsabilidade à personalidade do líder no arranjo político e educacional que se fez no Brasil pós-1930

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Barros

Entrevista original de 2007*: Um dos maiores especialistas sobre a Era Vargas, o professor e historiador Boris Fausto, autor de A Revolução de 1930 e de uma biografia sobre o político gaúcho (as duas obras lançadas pela Companhia das Letras), credita ao estilo do líder muito do que se configurou no país da década de 30 em diante.

“Há um pragmatismo em função de como o processo político se desenvolve, das necessidades políticas do governo, e ao mesmo tempo há uma concepção de intervencionismo, de um projeto educativo nacional”, analisa o historiador ao ser questionado sobre se o projeto de Getúlio foi fruto de uma visão estratégica.

Boris Fausto

Boris Fausto faleceu em abril de 2023

Na entrevista a seguir, concedida a Rubem Barros, Boris Fausto fala sobre a importância de Gustavo Capanema, a classe média que se formou no Estado Novo, a Argentina e o futuro da escola pública no Brasil.

Os projetos de nação da oligarquia cafeeira e dos revolucionários de 30 eram muito diferentes na essência?

A ideia de nação que imperou até 1930 e a que surgiu depois disso são bastante diferentes. Por muito tempo buscamos interpretações classistas – não que elas não existissem – mas mais importante do que isso foram as mudanças institucionais. E o projeto de nação [instaurado em 30] aponta para essas mudanças. A montagem do sistema que prevaleceu na Primeira República veio do fim do século 19, com uma federação em que a ideia de nação estava subordinada ao poder e à competência de atribuições dos grandes Estados. Isso terminou a partir de 30. O processo que começa aí é oposto, com uma idéia de nação centralizada em que a União detém um grande número de poderes e que desembocará inclusive na ditadura do Estado Novo.


A personalidade de Getúlio foi determinante no tipo de arranjo político que se seguiu à Revolução de 1930?

O papel do Getúlio é muito grande. Não é só com base na sua biografia que explicamos os anos posteriores a 1930, mas as concepções dele, as decisões, o estilo, a maneira de enfrentar os acontecimentos à medida que eles  ocorriam foram determinantes.

A formação de um projeto educacional e de propaganda para as massas foi fruto de uma visão estratégica ou apenas de intuição e senso de oportunidade?

Essa pergunta vale para muitas áreas: o que é improvisação, o que é estratégia elaborada? Diria que é uma combinação dessas duas coisas. Há um pragmatismo em função de como o processo político se desenvolve, das necessidades políticas do governo, e ao mesmo tempo há uma concepção de intervencionismo, de um projeto educativo nacional que surge pelos nomes de Francisco Campos e, mais importante, de Gustavo Capanema.


A estabilidade do ministro Capanema é um ponto fora da curva na história pública brasileira. O que foi determinante para isso?

Uma das características do governo Getúlio, passada a fase dos ajustes da fratura que representou a Revolução de 1932, foi a continuidade de pessoas nos ministérios. Várias pessoas duraram muito ou foram e voltaram. Oswaldo Aranha, Góis Monteiro, o general Dutra. Mas não há dúvida de que no terreno da educação existiu uma longevidade impressionante. Getúlio comprou a figura do Capanema. Achou que sua atuação trazia frutos e era importante. Não creio que ele tivesse a visão que o Capanema tinha no plano da arquitetura, das artes, da implantação do modernismo – gostos mais avançados. Mas, de alguma maneira, confiava no que Capanema fazia e fez com que ele permanecesse, contrastando com outras épocas.


E como a visão de educação dos governos Getúlio se expressa nas Constituições brasileiras?

A ênfase no papel da educação aparece em duas Constituições: na democrática, de 34, e na Carta de 1937, que instituiu o Estado Novo. Elas têm semelhanças. O texto sobre educação é, de certo modo, muito prolixo e fala muito em educação cívica – o que lembra a moral e cívica do tempo da ditadura – o valor do esporte, a educação física, coisas que têm muito que ver com a educação fascista. Para se falar de educação no período Vargas, tem de se distinguir entre o que se pretendia e a prática – que é sempre meio relaxada. Mas os objetivos que vão se consolidando têm semelhança com uma educação de tipo fascista, para a formação de um patriota que se curva ao Estado.


Em busca de apoio popular, Vargas se voltou ao mercado interno. Mesmo assim, o fenômeno de uma classe média mais orgânica parece sempre ter sido muito restrito no país. Por quê?

É difícil caracterizar o que seja classe média, independentemente da época. Quando se fala em trabalhador urbano ou operário, é algo muito claro. Quando se fala em elite, também é evidente. Já classe média é muita coisa. Começando pelo fato de que há extratos diferentes de classe média, que variam por sua composição étnica ou pelo fato de serem ascendentes ou descendentes. Costumo dizer que classe média é ameba. Quando você quer agarrar, escorrega. O que não quer dizer que não exista, que não tenha presença na sociedade.


E como era a que se formou com Getúlio Vargas?

Tinha algumas características próprias e divergentes daquela que vinha do período anterior. Não se pode falar que não havia classe média no Brasil e que se formou após a Revolução de 1930. Não é isso. Há vários setores de classe média nos anos 30, novos e velhos. Os novos se criaram no bojo do processo de industrialização. São pequenos e médios empresários em grande quantidade, setores do comércio, de serviços, gente que ascendeu à sombra do regime e apoiou Getúlio com ênfase. Muitas vezes se esquece disso, pois é muito nítida a relação Getúlio/trabalhadores organizados, mas se esquece que houve setores de classe média que tiveram papel relevante no apoio a Vargas em diferentes aspectos. Ao mesmo tempo, existem setores que vão noutro sentido. Quem formou o coração da revolução de 32? A classe média.

Não foi só ela, pois foi uma revolução que abrangeu as classes todas em São Paulo. Mas ela teve papel importante na mobilização, na crença em certos valores, nas liberdades, na democracia. Essa classe média que já vinha do período anterior a 1930, que apoiou Getúlio com bastante entusiasmo porque esperava que se instituísse uma república liberal no Brasil, sentiu-se traída desde a marcha que tomou o poder a partir do governo provisório, no caminho de um regime autoritário. E suas aspirações são diferentes daquelas da classe média que se formou no pós-30.


Mas quando comparamos a presença da classe média na Argentina, ela parece muito mais forte…

A classe média daqui não tem grande grau de articulação. Isso tem a ver com a sociedade como um todo. A sociedade argentina é mais articulada. Por exemplo, um tema que mobiliza muito a classe média é a violência. Na Argentina, de certo modo isso é uma novidade, com a qual nós convivemos há muito tempo. Qual a diferença? Houve uma morte lá e eles organizaram uma manifestação com 50 mil pessoas, o grosso de classe média. Aqui, há uma situação muito pior e, apesar dos esforços, as manifestações são muito restritas.


Até os anos 30, o Brasil tinha uma estrutura burocrática inferior à da Argentina. Daí em diante, investiu-se muito numa tecnocracia especializada. Até que ponto isso se relacionava com a visão de educação do governo Vargas?

A elite argentina tinha um projeto de nação desde muito cedo, e a educação tinha um papel muito importante nesse projeto, principalmente de absorção do imigrante. [Domingo] Sarmiento [presidente argentino de 1868 a 1874], por exemplo, foi uma entre as grandes figuras da elite argentina preocupadas com a educação. Isso aconteceu muito tarde no Brasil. Na Primeira República, aconteceu de forma regionalizada. São Paulo e o Rio Grande do Sul fizeram experiências de reforma educativa. O projeto nacional é algo do pós-30 e vem acompanhado de algo que foi se afirmando, que é a constituição de um “cidadão nacional”. As ideias de civismo e patriotismo foram ganhando muita relevância. Na questão da educação, existe outro aspecto no período do ímpeto da industrialização, que foi a formação das escolas técnicas, a expectativa que se formasse uma mão-de-obra mais qualificada. Na formação da burocracia do Estado Novo e na tentativa de construção de um projeto educacional existe um relacionamento, mas a preocupação maior foi a de formar quadros para gerir o Estado em todas as áreas.


Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo são vistos por alguns como detentores de uma visão elitista de educação. Qual a sua avaliação desse diagnóstico?

Tenho receio do uso indiscriminado da palavra elitismo. Do que estamos falando quando a usamos? Esse nome recobre um ataque à qualidade das coisas. Sou sempre a favor de que as coisas tenham qualidade e que se incorpore um número maior da população na qualidade do ensino, da arte, da comunicação. Pode ser uma utopia, mas temos de buscá-la. Eu deixaria de lado esse rótulo, e diria que eles são importantes, sim.


É inevitável que, ao ampliar o acesso à escola, haja queda no nível de ensino?

Quando digo que o desejável é a melhoria, mas que essa melhoria da qualidade venha acompanhada da quantidade, não digo que sejam fenômenos sincrônicos. A queda de qualidade, quando você tem de colocar mais pessoas na escola, é inevitável. Ouço pessoas da minha geração dizerem ‘Ah, o ensino daquela época foi por terra’, mas acho que é preciso relativizar essa visão saudosista.


O governo Lula tem apostado suas fichas na escola pública. O que esperar de uma escola pública rejeitada pela classe média?

Se pensarmos em termos das relações entre escola pública e classe média, a escola pública só pode se reafirmar se mudar de qualidade. Se não, a classe média, que tem como trunfo e valor o conhecimento, que quer dar uma educação aberta aos filhos – e isso é positivo – só irá para a escola pública pressionada pelo preço das escolas particulares ou se houver uma melhoria considerável. Mas isso implica uma série de coisas, como qualidade de professores, de gestão e uma elevação contínua que faça com que não haja uma discriminação nas escolas públicas entre alunos de classe média e pobres.

Não é um paradoxo que a escola pública evolua sem aqueles que, em tese, têm mais consciência de cidadania?

Essa é uma dificuldade real. Se não houver gente com vocalização, com canais para expressar e pressionar nesse sentido, as coisas acontecem de cima para baixo, por uma tentativa de governo, o que não é bom. A pressão aí é menor. Alguém das classes populares que coloca seu filho na escola, e hoje isso é perfeitamente possível, se contenta com isso, pelo menos num primeiro momento. Mas é muito pouco para a formação da pessoa como cidadã, para a obtenção de bons empregos, que exigem qualificação.

*A entrevista foi realizada em 2007 para a edição 126, publicada em 2011 no site e atualizada em 2023. 

Leia também:

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Escute nosso episódio de podcast:

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Autor

Rubem Barros


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