NOTÍCIA

Olhar pedagógico

Autor

Laura Rachid

Publicado em 31/10/2025

Débora Garofalo: BNCC da Computação ainda está longe da sala de aula

A professora e hoje consultora se diz preocupada com a situação atual das diretrizes da computação — homologadas há três anos — e traz orientações. Nesta conversa, afirma ainda ser viável um apagão docente se as ações continuarem lentas e os salários baixos

Débora Garofalo tem sido um farol para o país na implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Computação, homologada em 2022 — inclusive, se diz preocupada: “Temos um documento robusto e com conceitos ainda muito técnicos, o que tende a gerar questionamento do professor”.

Aos 46 anos, a inquietude para que a nossa educação avance permanece como uma das características da professora e hoje consultora. Filha da escola pública, lecionou na rede pública da cidade de SP, participou da criação e coordenou a Escola de Formação dos Profissionais da Educação do Futuro, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo; na sequência foi diretora de inovação em um braço da Secretaria Municipal de Educação do RJ, liderando a implementação de projetos como os Ginásios Educacionais Tecnológicos. Também coordenou o Centro de Inovação da Educação Básica Paulista, na Secretaria Estadual de Educação do Estado de SP. Atualmente dá palestras Brasil afora, é consultora educacional e autora de livros sobre cultura maker.

Referência nacional para tantas e tantos docentes desde que teve seu projeto Robótica com Sucata reconhecido internacionalmente no chamado Nobel da Educação, o Global Teacher Prize, Débora concedeu esta entrevista recém-chegada da Ucrânia – foi a única brasileira convidada pelo presidente e primeira-dama ucranianos a participar de uma Cúpula organizada por eles que discutiu como a educação molda o mundo. Confira a entrevista.

BNCC da computação

Sobre a vivência na Ucrânia em setembro deste ano: Por conta do contexto, país em guerra, foi a experiência mais incrível da minha carreira (Foto: Fabiano Scheck)

Como foi a 5ª Cúpula das Primeiras-Damas e Cavalheiros, em Kiev, na Ucrânia?

Por conta do contexto, país em guerra, foi a experiência mais incrível da minha carreira. O forte do evento foi a vivência com os estudantes de escola pública regular [Débora deu aula a eles]. Esses estudantes me relataram que sofrem no inverno por conta dos blackouts — a parte de consumo de energia do sistema foi atacada. Tanto que no verão nem ligam o ar-condicionado e no inverno passam dias sem luz. A partir dessa realidade, a minha proposta foi fazer lanternas e baterias sustentáveis; até porque eles já possuem muito conhecimento de eletrônica high tech. E eles amaram a proposta. Também quis saber sobre a saúde mental deles. Me explicaram que, no começo da guerra, foi difícil porque as crianças tinham acabado de viver a pandemia. E, ainda hoje, muitas meninas e meninos estão com aula remota, principalmente no leste da Ucrânia, totalmente tomado. Além disso, professores relataram experiências próprias de tortura, que acontecem quando um território é dominado para, então, impor o sistema de ensino russo. Esses professores e professoras são verdadeiros heróis.

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Já em termos de educação, a Ucrânia está anos-luz à nossa frente. Por exemplo, fiquei assustada com a criticidade dos estudantes ucranianos em relação à inteligência artificial (IA). Eles sabem que a IA erra e que há o momento de usá-la (não é para tudo). De fato, possuem uma criticidade maior [que a do brasileiro] por conta de terem boa base educacional. Inteligência artificial desplugada, tema que temos utilizado no Brasil e em países em desenvolvimento, lá nem conheciam esse conceito. 

Durante a Cúpula, não teve discussões sobre a educação de outros países. O único momento em que o Brasil apareceu foi quando o alemão Andreas Schleicher, da OCDE, apresentou a realidade de Sobral (CE) como a educação que faz bem o arroz e o feijão. O recado que o Summit deixa é que com educação não existe guerra. Ao investirmos em educação, garantimos o futuro de civilizações.

Em conversas com professores(as) e secretarias de distintas realidades do país, o que é preciso para a BNCC da Computação ser implantada — cujo prazo era 2023?

A BNCC da Computação ainda está longe da sala de aula. Temos um documento robusto e com conceitos ainda muito técnicos, o que tende a gerar questionamento do professor, como: ‘não fui formado para aplicar isso’. 

É importante lembrar que a BNCC é sempre um norte, sendo assim, ela está aberta para estados e municípios adaptarem a linguagem em seus currículos e para decidirem como a implementarão, por exemplo, se por meio de um componente específico. O estado de São Paulo foi pioneiro ao implantar de uma maneira transversal a disciplina ‘tecnologia e inovação’ [Débora coordenou esse projeto]. Estados e municípios também devem acrescentar um desenho de competências e habilidades necessárias, porque ainda há questões difíceis de compreender — como o pensamento computacional. Tenho receio de como ficarão esses currículos. É preciso uma equipe para prepará-los.

Além disso, municípios não têm suporte dentro das secretarias; eles não recebem verbas ou recursos para lidar com a tecnologia, e aqui falo diretamente sobre parque tecnológico, conectividade. É preciso lembrar que passamos anos difíceis enquanto governo federal com algumas políticas descontinuadas e agora elas estão voltando a engrenar. Uma delas é a política de conectividade.

Também é importante destacar que vejo medo, receio, nos meus colegas professores. Porque o novo assusta. E, novamente, a maioria dos professores não recebeu desenvolvimento de competências digitais.

BNCC da computação

Grupo de professores(as) de diferentes países e primeiras-damas da Áustria, Estônia, Finlândia, Lituânia e Sérvia. Débora Garofalo (vestido azul) ao lado da primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska (calça e blazer brancos) (Foto: arquivo pessoal)

O que é esse pensamento computacional e que aspecto costuma confundir educadores(as)?

Precisamos desmitificar o que é o pensamento computacional. Estamos falando de uma mentalidade, de um pensamento que muitas vezes é ligado à questão matemática, ao cálculo lógico. Só que também envolve outras áreas. Por exemplo, em um software de programação como o Scratch, muitas vezes meus alunos tinham de contar histórias, ou seja, a língua portuguesa estava presente.

A partir disso, pergunto: ‘antes de abordar a inteligência artificial, professor, você ensinou ao estudante a pedagogia do Prompt? Ele sabe, realmente, o que perguntar e que essa ferramenta erra?’ Por isso é mais gostoso a gente partir do desplugado, do concreto, para algo que seja mais específico e digital. Então, antes de ensinar programação para os meus estudantes, vou ensinar que quem domina a máquina são eles. A charada também é ótima para ensinar programação; ela é raciocínio. São coisas simples, mas que se perdem. Daí vem a ideia de que fazer robótica é apenas criar um robô. Não. É preciso trabalhar o pensamento, até porque as redes sociais, tão usadas entre a garotada, são algoritmos e precisamos ensinar como elas funcionam. 

Esse é o papel da educação: não deixar que meninos e meninas sejam consumidores de tecnologia, mas, principalmente, produtores dela. Mas, sobre isso, estamos falhando enquanto sociedade.

O que tem visto de aplicação da BNCC da Computação na sala de aula? O que professores(as) já estão fazendo?

Vejo professores trazendo muito da cultura maker para dentro da sala de aula — o que avalio como avanço. Isso é muito perceptível na educação infantil, tanto que sempre brinco que nessa etapa os professores são makers por natureza, só que não sabem disso. Porque na educação infantil eles trazem materiais recicláveis, aplicam a mão na massa com as crianças para além da arte, do senso estético.

Também noto que muitas das políticas públicas já nasceram dentro de uma sala de aula. Precisamos começar a ter um repositório aberto e remixado de informações e aulas desses professores. Porque os professores sabem muito, eles dominam muito isso. Recentemente, fiz uma formação docente online e dei 20 minutos para um desafio criativo. Recebi soluções incríveis de como introduzir a cultura maker dentro das aulas de maneira transversal. Ou seja, precisamos dar melhores condições a esse educador.

E, no meio desse turbilhão de desafios, temos a inteligência artificial.

Recentemente, li que 70% dos estudantes do ensino médio já têm acesso à inteligência artificial. Aqui temos um desafio: a BNCC da Computação foi homologada em 2022, antes da explosão da acessibilidade da IA, quer dizer, a BNCC não a contempla. Ou seja, também temos documentos que já precisariam ter uma revisão, só que ainda não têm — estamos extremamente atrasados com isso.

E o Brasil ainda não tem um documento específico de IA na educação, por exemplo, federal. Estamos debatendo a regulamentação dessa ferramenta em diversos aspectos. Claramente, temos alguns estados que saíram na frente, como o Piauí, onde existe um currículo de tecnologia. Aqui, volto a lembrar, não é só usar a ferramenta, o novo; é gerar criticidade, pensamento crítico nos estudantes — e é essa discussão que o momento pede. Usar a IA os jovens já sabem. Falta essa outra parte.

O Brasil e boa parte do mundo, segundo pesquisas, pode sofrer um apagão docente. Enquanto professora, como avalia o desinteresse das juventudes por essa profissão? Como reverter essa situação?

A pergunta é complexa e vivenciamos um momento realmente alarmante. Este ano, em Dubai [enquanto embaixadora da Varkey Foundation], discutimos a questão da necessidade de 44 milhões de novos professores até 2030. 

E enquanto Brasil, somos muito desvalorizados, inclusive, minha própria experiência enfatiza essa realidade — não me sinto tão valorizada pelo meu trabalho aqui como me sinto lá fora, onde as pessoas têm um interesse genuíno de saber, de questionar, de como foi a evolução do projeto de robótica até se transformar em política pública. Aqui reconhecem que o trabalho existe, mas há uma falta de interesse.

E no meio dessa desvalorização há a situação delicada da saúde mental de nossos professores. Fiz duas universidades, duas faculdades e duas especializações, mas nenhuma delas me deu a base que tive no magistério para lidar com problemas da sala de aula. O que acontece é que temos professores de excelência que, quando caem na realidade das escolas públicas, falam: ‘eu estou exonerando. Isso não é para mim. Não estudei para isso e nem fui preparado para isso’. Choca.

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Quer dizer, a rotina docente é marcada por constante pressão.

Sim. Sem contar a desvalorização natural da nossa carreira em termos de salários. Não esqueço de uma pesquisa da Varkey Foundation de 2018 que colocou o Brasil em último lugar no quesito valorização docente. Aliás, valorização docente não é só dar uma carteirinha de acesso à cultura — que acho muito pertinente, importante —, mas é realmente dar recursos e é aqui que falta política pública, inclusive, com formação docente que apoie realmente a pessoa a ser professor, com incentivo de bolsa e residência pedagógica. Porque o estágio no nosso país não contempla as dificuldades com que temos de lidar. E, hoje, um professor não pode mais só estar preparado ali para uma transmissão de conhecimento; o papel mudou, olhamos um ser que é integral e singular.

Nisso, cobramos desse professor que ele tenha metodologias diferenciadas, mas sem nenhuma infraestrutura para lidar com 40 estudantes, muitos deles com deficiência, sem algum apoio, sem algum recurso, sem uma formação inicial suficiente e sem nenhuma formação continuada. Ou seja, temos tudo para dar muito errado. Sabemos as causas, a questão é que caminhos a passos lentos para, realmente, suprir as necessidades. Então vejo que um apagão é quase inviável de não acontecer por essa falta de interesse. Claro, estamos com novas políticas, o que é difícil analisar [os impactos] por serem recentes, mas que visam [combater] justamente alguns pontos colocados aqui. Além disso, temos muitos professores informais dentro da carreira do magistério que estão na linha de frente em regiões remotas do país.

O projeto de robótica, premiado internacionalmente, de início não teve apoio de sua comunidade escolar. Qual a ‘saída’ para outros(as) docentes não serem barrados(as) ou se desestimularem?

Caminhamos em uma educação em que queremos respostas imediatas. Mas não podemos esquecer que vivenciamos uma questão cultural que acarreta quebra de paradigmas. Vivenciamos a educação 1.0, a educação 2.0, centrada no professor e tecnicista, nos dando a herança da educação bancária, como dizia Paulo Freire, em que só depositamos e cujas tarefas são repetitivas. O fato é que temos um desalinhamento educacional no nosso país. Eu precisei de três anos e meio para as pessoas enxergarem aquilo que eu estava fazendo com o projeto de robótica. E talvez o sucesso que tive tenha sido graças ao meu reconhecimento internacional. Sem ele, teria sido mais um trabalho de resiliência. São discrepâncias grandes, medo, estigma da formação que tivemos e eu me coloco dentro disso. Só que, no decorrer da minha caminhada, entendia que fazia mais sentido atuar pelo acolhimento, pelo afeto. 

Aliás, na Ucrânia, a intérprete que me acompanhou, ucraniana, morou no Brasil, e me disse: “Obrigada por você ter esse afeto pelas pessoas, porque o que falta na educação ucraniana é a questão do afeto. Aqui ainda é tudo muito ‘eu sou professor e você é o aluno, vamos manter um certo distanciamento’”. Só que a educação não comporta mais esse distanciamento. Então, os meus colegas [da escola em que lecionou e lançou o projeto] tinham medo pela falta de controle e pelo trabalho a mais que geraria. Mas eles foram se convencendo na medida em que as crianças começaram a se interessar mais até mesmo pelos conteúdos deles.

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