Professor de língua portuguesa e orientador educacional
Publicado em 23/09/2025
A contaminação densa do receituário neoliberalista e do mundo corporativo invadiu as salas de aula, silenciando o discurso do professor em nome do protagonismo do aluno
O neoliberalismo nos últimos 30 anos abriu seus tentáculos avassaladoramente na sociedade, ceifando direitos trabalhistas, minimizando a força sindical e ditando os rumos das escolas na aderência ao ideário neoliberalista.
Como as instituições de ensino não vivem isoladas no mundo, não escaparam da sanha feroz dos pressupostos empresariais que, desde o início da década de 90 do século passado, vêm ganhando espaço no pensamento e na atuação escolar com o objetivo claro de tornar a educação muito mais uma preparação para o trabalho do que uma formação integral do jovem para que ele pense o mundo e atue criticamente nele.
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Essa contaminação densa do receituário neoliberalista e do mundo corporativo não inoculou apenas o discurso escolar com os termos importados desse universo (qualidade, modernização, inovação, competição, motivação, ranking, feedback, devolutiva, eficiência, meritocracia e habilidades comportamentais, soft skill e hard skill), ela invadiu as salas de aula, silenciando o discurso do professor em nome do protagonismo do aluno e das metodologias ativas e do gerenciamento dos conflitos e dos dramas relacionais e existências da meninada, fazendo do docente menos um mentor intelectual do que um gestor educativo e relacional que, na maior parte das vezes, deve mediar a aprendizagem e os dramas dos alunos.
Evidentemente que, sob esse prisma, o silenciamento do discurso do professor crítico tal qual abafamento das vozes sindicais é um projeto silencioso e bem articulado que vem se alinhando e ganhando força quase que irreversível na sociedade.
As tais transformações necessárias para ajustar a escola aos novos tempos, que na verdade são a máscara do desmanche da escola pensante, e para preparar os alunos para o século 21, são sistematicamente impostas e repetidas nas instituições de ensino e nas publicações voltadas à educação como um mantra a ser digerido e aceito por adesão, por cansaço ou por costume. Repetido e aceito, inclusive por profissionais de educação que deveriam se opor a esse terrível silêncio.
Nesse processo tocado há tempos e adiante, ainda que os discursos promovidos digam o contrário, professores e alunos tornam-se secundários, relegados à condição de executores de tarefas e de processos educativos cuja concepção já vem planejada e acabada com objetivos supostamente neutros, imparciais e ajustados às solicitações dos novos tempos.
Tempos esses que tornam o fazer educativo funcional e pronto para atingir determinadas metas como em escritório, sejam elas avaliações externas oficiais ou de plataformas que visam medir a eficiência da aprendizagem dos alunos com base no que eles determinaram como importante. Tudo bastante pasteurizado e alinhado às necessidades do espírito da época. E com isso a educação deixa de ser um bem em si ou republicano para se tornar um caminho para a prosperidade.
Cumprir as apostilas e os livros escolares à risca como pilotos de ‘piloto automático’, seguir os ditames das plataformas de ensino com suas metas e ‘ranqueamentos’, acatar as receitas dos novos tempos que sugerem itinerários voltados à prática e ao mundo do trabalho com suas startups e metodologia STEAM e conduzir o curso, sobrepondo as habilidades (com boa parte delas atreladas aos contextos corporativos) aos conteúdos, é sem dúvida um caminho a tornar o professor um preparador de jovens para a vida profissional e prática e um mediador de um currículo alinhado aos interesses do mercado.
O ideário neoliberal vem transformando a educação em um mercado, em que a positividade, a produtividade e a qualidade são medidas por critérios de eficiência, de competitividade e de atingimento de metas (Foto: Shutterstock)
Percebe-se o quanto esse caminho é danoso, haja vista os adoecimentos discentes e docentes típicos de profissionais de alta performance, sobretudo porque e, infelizmente, o ideário neoliberal vem transformando a educação em um mercado, em que a positividade, a produtividade e a qualidade são medidas por critérios de eficiência, de competitividade e de atingimento de metas. O insucesso dessa empreitada torna-se motivo de dor e de frustração, e, para piorar, de autorresponsabilização e de autopunição, porque a culpa pela falha recairá sempre sobre o indivíduo inepto, seja ele aluno ou professor.
Essa lógica é bem cara ao universo empresarial que despreza o trabalho intelectual não gerador de riquezas e promove em professores e alunos uma relação de dívida com algum propósito, normalmente inalcançável para todo o grupo envolvido. Assim, parte significativa dos atores da educação tornam-se tristes auditores de si mesmos. Cada um a seu modo infeliz e adoecido por não conseguir tocar com as mãos os objetivos para eles propostos.
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Mesmo os projetos atrelados à OCDE e à Unesco, que são em boa parte sérios, adequados e consistentes, padecem do mesmo mal neoliberalista e empresarial, uma vez que se filiam a uma visão instrumental da vida escolar.
Não é novo o processo nem parece passageiro. A prova disso está nas ruas e nas redes sociais, na dissociação cognitiva dos adultos formados nas escolas nas últimas décadas com discursos e crenças estapafúrdias e perigosas, com indivíduos pobres e de classe média defendendo pautas que ferem seus direitos, com jovens apáticos, adoecidos e misóginos reproduzindo esse mundo em objetivos de desenvolvimento econômico, contribuindo para promover uma visão comparativa e competitiva da educação, ocupando-se fundamentalmente mais da mensuração do que dos outros aspectos humanos que estão em jogo na construção da educação escolar.
Com isso, a escola passa a ser a manutenção da (des)ordem social, sem questionamento revolucionário, desmantelada e manca, tentando sobreviver às leis do mercado. O resultado desse desmanche crítico é desesperador.
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