NOTÍCIA
A partir da constatação de que as juventudes necessitam de uma formação para além da decoreba, diretor-executivo do vestibular da USP destaca que o conhecimento deve ser ensinado visando sua aplicabilidade na sociedade; ele explica também as mudanças que passam a valer na prova deste ano e de que maneira foram construídas
Em dezembro do ano passado, a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), responsável pelas provas de admissão de estudantes na Universidade de São Paulo (USP), anunciou mudanças a partir da edição 2026. O destaque está na estrutura da prova, que deixa de ser dividida por disciplinas e passa a conversar, finalmente, com as quatro áreas do conhecimento definidas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que inclui as competências e habilidades específicas esperadas para cada área, destacando, também, a interdisciplinaridade. Leve aproximação com os itinerários formativos, redação não apenas dissertativa e obras escritas só por mulheres também fazem parte das novidades, além da valorização da filosofia, sociologia, artes e educação física — que poderão ser cobradas na prova.
Há mais de 20 anos, o programa do vestibular não passava por mudanças estruturais. Fato é que as constantes e rápidas transformações na sociedade têm chacoalhado tudo, todos e todas, incluindo as formas como avaliamos nossos jovens.
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Aliás, essas atualizações conversam com uma celebração que se aproxima: ano que vem a Fuvest completa 50 anos. “Ela está no auge da vida”, destaca o diretor-executivo da Fundação, Gustavo Ferraz de Campos Monaco, também professor titular de direito internacional privado da Faculdade de Direito da USP.
Nesta entrevista, Gustavo compartilha como esse novo programa foi elaborado; já sobre modos de avaliação, diz que é favorável ao modelo seriado, adotado no Provão Paulista, além de outros assuntos. Um trecho que não coube nesta edição, mas que vale o destaque, é sua afirmação de que a pessoa mais inteligente que conheceu foi o porteiro de uma faculdade que, para descrever uma pessoa, a associou a uma lata com muita pedra e outra com pouca, destacando a diferença do som criado. Confira, a seguir.
“Nunca voltaremos a um modelo em que tínhamos três vestibulares diferentes: um para as humanidades, um para as exatas, outro para as biológicas” (Foto: arquivo pessoal)
A Universidade de São Paulo é muito grande, apesar de ser de muita qualidade — é raro juntar as duas coisas. Por isso, as coisas na USP costumam demorar um pouco para serem absorvidas.
Acho que o principal ponto era a necessidade de atualizar o programa do vestibular à BNCC e também a uma nova forma de encarar o conhecimento — precisávamos deixar explícito que o conhecimento não pode ser visto como algo fragmentado: a pessoa vai ter o conhecimento e, além das informações, ela precisa ter habilidades de concatenar essas informações para criar o seu conhecimento a respeito das situações.
Então, é pensando nisso que foi feita essa atualização do programa do vestibular, que precisava não só atender a uma necessidade pedagógica, mas também a uma necessidade de organização do próprio ensino na educação básica. Muitas escolas seguem, sobretudo aqui no estado de São Paulo, pela Fuvest. E era importante que nós respaldássemos essa alteração que foi bastante negociada, passou por várias fases no âmbito federal; na última revisão do currículo mínimo do ensino médio houve contribuições muito relevantes da Universidade de São Paulo. Então, nada mais justo do que a gente refletir isso no programa do vestibular.
Foi um processo longo que durou mais de um ano e meio. Nasceu na Fuvest e terminou na USP para voltar à Fuvest. Pedimos para as bancas das diversas disciplinas do vestibular adaptarem o programa que até então era seguido à BNCC. Isso foi feito e gerou-se uma proposta que foi encaminhada para a reitoria de graduação, órgão colegiado máximo no âmbito da graduação na USP.
O professor Marcos Garcia Neira, pró-reitor adjunto de graduação e que foi o antecessor da professora Carlota Boto na diretoria da Faculdade de Educação, coordenou esse processo da seguinte forma: convidou as unidades que têm o ensino das disciplinas do ensino médio a indicarem colegas, representantes para participar de um grupo de trabalho. Então, unidades que têm professores de matemática, física, português, história, geografia, biologia. Primeiro, esse grupo de trabalho foi dividido por unidade curricular. Por exemplo, o pessoal da biologia trabalhou apenas entre eles e depois houve uma aproximação pelas grandes áreas: linguagens; ciências humanas e sociais aplicadas; e ciências da natureza. A matemática continuou isolada porque é assim que foi concebida e/ou vem sendo.
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Essas equipes tiveram total liberdade. Tanto que no programa do vestibular divulgado há explicação prévia no início de cada grande área de como aquilo está organizado. Porque teve aqueles [grupos de professores] que fizeram a indicação das competências, depois iam para as habilidades e, para cada habilidade, iam vinculando em cada componente curricular o conteúdo. Houve os que dividiram completamente as competências vinculando-as a algumas habilidades e alguns conteúdos dos quatro componentes. E houve também quem fez o inverso. As ciências da natureza preferiram atribuir todas as habilidades, dividir só dos componentes os objetos do conhecimento. Tem de tudo ali, o que mostra a liberdade e a forma democrática de como foi construído esse programa — o documento foi aprovado por unanimidade, tanto na Câmara do Vestibular e das formas de ingresso quanto no Conselho de Graduação, que congrega, reúne, presidentes das comissões de graduação de todas as unidades da USP.
Então, mesmo aqueles que não participaram porque não tinham cursos — por exemplo, Faculdade de Direito não tem cursos ligados às disciplinas do ensino médio —, mesmo os representantes dessas unidades olharam para o produto e viram que era de qualidade e aprovaram por unanimidade.
Não houve votos contrários. O que mostra um trabalho de elaboração muito cuidadoso e que respeita a tradição da universidade, da Fuvest, que é não abrir mão dos conteúdos. A Fuvest tem orgulho de ser conteudista, de cobrar conteúdos, mas não pelo conteúdo. Cobrar o conteúdo contextualizado, vinculado a uma situação concreta, a um problema social que precisa de reflexão.
A presença dos itinerários formativos é mais fácil de ser percebida como um fator de discriminação positiva na segunda fase, escrita. Obviamente, na primeira fase precisamos fazer uma prova que leve em consideração as questões que são de conhecimento obrigatório, direcionada para todos os cursos, portanto, para todo perfil de candidatos. Já na segunda fase, tomaremos cuidado para não fazer perguntas muito específicas que permitam apenas a uma parte dos candidatos — aqueles que escolheram aquele perfil formativo — resolver aquela questão, acho que há um espaço muito importante de valorização do aprofundamento que o estudante tenha feito.
É no âmbito da correção das questões da segunda fase que essas diferenças de percursos poderão ser usadas justamente para fazer que discriminem entre os estudantes. Nunca voltaremos a um modelo em que tínhamos três vestibulares diferentes: um para as humanidades, um para as exatas, outro para as biológicas. Assim, estamos atentos à existência desses percursos formativos como uma forma de desenvolvimento de habilidades específicas e que podem ser demonstradas, sobretudo, na segunda fase, e gerar uma discriminação positiva no sentido de valorizar aqueles que acrescentarem algo pertinente, para além do básico, do minimamente esperado para uma resposta de um estudante que tenha feito outro percurso formativo. Não é a demonstração do conhecimento pela demonstração do conhecimento.
Com isso não discriminamos negativamente quem mudou de ideia no final do curso, mudou de área, resolveu buscar outra formação universitária que não aquela mais presumível a partir do percurso que fez no ensino médio. Mas, ao mesmo tempo, privilegiamos alguns que se dedicam já àquela grande área do conhecimento com o aprofundamento do próprio conhecimento das suas habilidades.
Venho de uma área do direito que por muito tempo, no ensino jurídico, foi considerada uma perfumaria do direito. Era colocada como ‘ah, é interessante saber’, mas não era essencial. E, às vezes, a minha sensação é que o gestor educacional acha que essas questões filosóficas, sociológicas, de artes e até em certa medida a própria educação física, na sua vertente mais ligada à teoria, ao movimento do corpo, à projeção do corpo, etc., seriam uma espécie de perfumarias, porque não seriam aquilo que o estudante precisaria efetivamente saber, mas, se soubesse, seria bom. ‘Então, não vamos perder tempo com isso, vamos focar naquilo que representa um percentual maior de questões do vestibular. Vamos ensinar matemática, biologia, português, etc., e diminuir a carga horária dessas outras áreas’. De fato, é uma maneira de pensar, contudo, diria que é uma forma que diminui a relevância efetiva que essas áreas podem ter no desenvolvimento das habilidades e das competências.
Isso é a parte mais importante, entender que o conhecimento, o conteúdo — a Fuvest sempre foi acusada de ser conteudista — é relevante, é importante. Mas, ele só faz sentido quando permite o manejo da habilidade para demonstrar uma competência.
Ou seja, ter uma formação filosófica, sociológica, formação na área de artes e educação física é importante, tem relevância para o conhecimento que eu posso ter da física, da biologia, da história, da geografia e em certo sentido até mesmo da matemática. A múlti e a interdisciplinaridade têm sido uma marca característica também das nossas provas nos últimos anos e reforçam a relevância dessas áreas. Aliás, é provável que volte a haver uma valorização dessas áreas do conhecimento quando esses temas começarem a aparecer na prova, inclusive, por gestores educacionais.
Uma juventude mais curiosa. Porque ter a oportunidade de ler livros que durante décadas ficaram esquecidos em algumas prateleiras, que não foram reeditados e agora o foram; poder ler a visão de autoras tão interessantes como a Paulina Chiziane, a Djaimilia Pereira de Almeida, que trazem visão diferente de culturas diferentes da brasileira; poder ler Conceição Evaristo com sua escrita mais fluida e que alguns dirão simples, mas, ao mesmo tempo, abordando questões sociais tão relevantes, é um convite a essa curiosidade, é um convite à comparação. Não é porque a lista é formada por tais obras que, necessariamente, na prova da Fuvest só cairão estas obras. Há uma possibilidade, isso já apareceu em vestibulares recentes, de se discutir o movimento literário ao qual os escritores e as escritoras pertencem a partir da comparação.
Por que não usar, por exemplo, Memórias de Martha, de uma autora do realismo, a Julia Almeida, para dialogar seja com Machado de Assis, seja com O cortiço de Aluísio Azevedo? Mas de toda sorte é possível comparar com autores importantes do realismo para mostrar, justamente, a diferença de visão do mundo. Uma escritora mulher, quando constrói um personagem feminino, ela faz isso de forma diferente do que um homem faz quando constrói uma personagem feminina e vice-versa.
A sociedade tem que caminhar. Não vou falar evoluir e nem involuir porque estaria atribuindo valor ao processo. Mas temos que buscar outras formas de avaliação, testando, estabelecendo parâmetros, vendo o que funciona e o que não funciona, para seguir adiante. Faz sentido cobrar de um estudante a decoreba da tabuada? Eu acho que ainda hoje faz, porque ela é um instrumento que agiliza uma série de outros processos que preciso fazer, como cálculos complexos e que se eu tenho o domínio da tabuada faço com maior fluidez, rapidez e eficiência.
Agora, o vestibular nunca vai cobrar qual é o peso que a tabuada deve ter na avaliação ou na formação do estudante. Isso é um pressuposto. Por outro lado, faz sentido eu obrigar esses estudantes a decorarem fórmulas, como na minha época de prestar o vestibular era cobrado? Já há alguns anos se entende que não.
Entendo como um pouco de cada coisa. Assim como no direito a lei vem a posteriori, os instrumentos de avaliação também. Eles são um retrato de uma época que já não é mais a mesma, ainda mais no dia a dia atual em que as coisas se sucedem com uma velocidade muito grande. Por outro lado, também há desinteresse do jovem por conta de muita coisa que ainda insistimos em ensinar da forma como fomos ensinados.
Nós estamos numa sociedade multitarefa, como fala o filósofo alemão de origem coreana Byung-Chul-Han — que foi até objeto de questões da redação da Fuvest recentemente. E ele nos diz que essa característica multitarefa é das sociedades mais rudimentares. E ele questiona: ‘Será que o indivíduo multitarefa está tendo tempo de reflexão exigida?’ Assim, a pergunta que você fez me permite perguntar: “Será que os instrumentos de avaliação estão fazendo este processo de reflexão? Será que os coordenadores pedagógicos e equivalentes das escolas estão refletindo a respeito disso? Será que a Fuvest, outros vestibulares e exames estão refletindo sobre isso? Se não estamos, precisamos começar. Já estamos atrasados.
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E isso vai produzir uma mudança, de novo, não no conteúdo daquilo que deve ser ensinado. O conteúdo é ensinado porque tem alguma função na vida em sociedade. Há, por exemplo, outras formas que despertem a curiosidade do estudante, que permitam que ele, na sua individualidade, perceba a aplicabilidade daquilo? Será que isso é muito mais importante? É por isso que questões de vestibular vêm cada vez mais contextualizadas, mostrando a aplicabilidade daquilo. Agora, é função do vestibular fazer isso ou o vestibular faz isso para que na ponta, nas escolas, os docentes o façam? É a eterna pergunta clássica do que veio primeiro, o ovo ou a galinha?
Estive na primeira reunião que deu origem ao Provão Paulista. Foi quando o nosso reitor, o professor Carlos Gilberto Carlotti Júnior, junto ao pró-reitor de graduação, professor Aluisio Cotrim Segurado, apresentaram a proposta de reservar uma parte das vagas a partir de uma avaliação seriada, na época era só para a Universidade de São Paulo. O nosso secretário de Educação gostou da ideia, levou ao governador, as outras universidades se
envolveram, tanto as duas presenciais quanto a virtual, além do Centro Paula Souza. Então, o Provão ganhou uma dimensão que a princípio não foi pensada, já que ele foi visualizado para a USP, mas desde o início, claro, com a possibilidade de abrir para as outras instituições interessadas. Acontece que a Fuvest tinha uma trava estatutária, a gente só podia trabalhar para a USP. E aí, quando o secretário me perguntou: ‘Mas a Fuvest pode fazer a prova?’ e eu disse: “Olha, infelizmente, no momento atual, não’. Hoje essa trava foi tirada. No entanto, a Vunesp [Fundação para o Vestibular da Unesp] tem uma capilaridade do estado muito maior do que a que a Fuvest tem, até porque ela sempre pôde trabalhar para outras instituições.
Então, o que foi combinado lá atrás, entre a diretoria da Fuvest, Vunesp e Comvest [Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp]: a Comvest não tem personalidade jurídica própria, como é o caso da Fuvest e da Vunesp. Combinamos que repartiríamos os temas e as disciplinas pelos três anos entre nós e bancas indicadas não só pela Vunesp, mas também pela Fuvest, também pela Unicamp. A Vunesp tem cumprido esse acordo e todos os anos convida pessoas, inclusive, que nós indicamos, que a Unicamp indica, que o Centro Paula Souza indica. A Univesp [Universidade Virtual do Estado de São Paulo] não tem corpo docente próprio, então não entra nesse cenário. Mas tem havido sim uma interação entre as instituições avaliadoras na elaboração do Provão.
Vejo com muito bons olhos esse modelo de avaliação continuada. Acho que o vestibular em si é essencial, porque não há vagas para todos, é preciso selecionar, mas se pudesse haver um vestibular seriado, eu não seria contrário. O problema é que é difícil trocar as rodas do caminhão com ele em movimento. Pontualmente, já havia uma tradição de avaliação do ensino médio estadual paulista por meio do Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo). Era uma avaliação do corpo docente, da coordenação, uma avaliação de uma série de coisas e se aproveitou isso para também avaliar os estudantes. Essa próxima turma a se formar este ano será a primeira com uma avaliação efetivamente seriada [somando os três anos do ensino médio].
Na redação passa a ser possível cobrar mais do que um gênero textual. As pessoas estão muito preocupadas com isso. Eu só lembro que não havia uma regra que obrigasse a ser dissertação, isso era um costume. Agora está explícito que podem ser cobrados outros gêneros textuais.
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