NOTÍCIA

Formação docente

Autor

Laura Rachid

Publicado em 05/05/2025

Petronilha Beatriz Gonçalves: estranhar o diferente não ofende; o que ofende é desqualificar

A afirmação da relatora da Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais convida à quebra da hegemonia do conhecimento e convivência

Serena, humilde e sorridente. Foi assim que aos 82 anos a professora titular e emérita da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, conversou em videochamada com a repórter da revista Educação. Indicada pelo movimento negro, foi a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira no Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2002 a 2006. Neste período, teve uma grande missão no CNE: ser relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, instituídas em 2004.

Nascida em Porto Alegre, RS, o fato de sua mãe ser professora foi determinante, segundo Petronilha, para saber da existência da ideologia do embranquecimento, somado ao fato de crescer no bairro até então chamado Colônia Africana. Seguindo os passos da mãe, aos 21 anos começou a dar aula no ensino básico, chegando a ser coordenadora. É licenciada em letras e doutora em ciências humanas – educação.

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Só em 2025 já contabiliza duas grandes homenagens à sua trajetória: a criação pelo Ministério da Educação do Selo Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva de Educação para as Relações Étnico-Raciais, voltado a secretarias de Educação; e o lançamento do livro Africanidades brasileiras: o legado de Petronilha Beatriz, publicado pela Fundação Santillana e organizado por Nilma Lino Gomes, referência em relações étnico-raciais, e André Lázaro, referência em políticas públicas para as diversidades. O livro pode ser lido gratuitamente no site da Fundação (ou acesse https://encurtador.com.br/8ppIz).

Nesta entrevista, Petronilha nos dá uma aula sobre convivência, cidadania e, consequentemente, multiculturalismo. Em praticamente todas as suas falas, está presente, ainda que em contextos diferentes, a importância de notar, valorizar, integrar e conviver com as diferentes relações existentes a cada passo do ser humano — aspectos fundamentais para um mundo que clama por saúde mental e que precisa, urgentemente, combater suas variadas violências, do bullying escolar, racismo, discriminação a imigrantes em diferentes países e guerras. Confira, a seguir, a entrevista.

Petronilha Gonçalves

Professor(a) não deve impor seu projeto, mas colocá-lo em diálogo com alunos, estudantes, famílias e o próprio bairro no qual a escola está inserida, orienta Petronilha Gonçalves (Foto: arquivo Fundação Santillana)

O que são relações étnico-raciais na educação?

As relações entre as pessoas de diferentes pertencimentos étnico-raciais se dão no dia a dia. Quando passamos por uma outra pessoa, mesmo que a gente conheça ou não, olhamos para essa pessoa — não precisa parar nem cumprimentar —, mas o fato de eu olhar para outra pessoa, com quem eu estou cruzando, estou reconhecendo a presença dela. Posso sorrir, mas é o fato de eu simplesmente reconhecer a presença dela. 

Muitas vezes, quando passamos por algumas pessoas que acham que a nossa presença não é adequada naquele lugar, as pessoas fazem cara feia, torcem o nariz. Isso talvez exista cada vez menos, mas ainda é frequente na nossa sociedade. E a educação das relações étnico-raciais enquanto uma preocupação dos estabelecimentos de ensino pretende que a gente aprenda a reconhecer a presença das outras pessoas, daquelas que são muito diferentes de nós por diferentes razões, sejam culturais, sejam de posições sociais.

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Mesmo com a existência de leis, por que elas não estão inseridas no dia a dia escolar? É pela defasagem da formação docente ou não podemos colocar apenas como ‘falha’ dos/das professores(as)?

Não podemos deixar tudo em cima dos professores e das professoras. A sociedade se construiu assim desde o século 16. E a forma de relações estabelecidas naquele momento permanece até hoje — como o fato de os europeus e seus descendentes se considerarem donos da terra, donos da sociedade e, talvez por se considerarem donos, se consideram superiores. É claro que é difícil a gente conhecer e reconhecer pessoas que pertencem a outros pertencimentos, seja étnico, racial, social. Mas não é impossível, quer dizer, o ser humano tem a possibilidade de compreender, desde que tenha disponibilidade. E estranhar o diferente não ofende. O que ofende é desqualificar.

Quando coordenadora pedagógica, como dialogava com professores(as) para a construção de projetos plurais?

Pelo menos enquanto atuei, nós, coordenadores, também éramos professores. Tínhamos uma história naquela escola, com os colegas professores, com os estudantes, com a direção. Então, as relações focalizam a forma como as pessoas convivem umas com as outras, como reconhecem a presença das outras pessoas, não meramente como uma presença física, mas também como uma presença que é cultural. Quer dizer, cada um vem com as raízes dos povos dos quais se origina e é a partir delas que se estabelecem as relações com as outras pessoas.

Então, esse tipo de construção implica pessoas (crianças, adolescentes, adultos) educadas para conviver numa sociedade em que há diferentes pertencimentos étnico-raciais, o que significa diferentes maneiras, não incompatíveis, mas diferentes maneiras de encarar a sociedade.

De que forma o planejamento, tema de seu mestrado, pode agregar no dia a dia docente?

A minha formação não foi em planejamento escolar, mas planejamento do sistema de ensino. Evidentemente que, enquanto professora, enquanto coordenadora pedagógica, o planejamento de ensino foi o centro. O que pode agregar é a posição dos professores: não só aquilo que eles dizem em seus planos de ensino, nas suas salas de aula, mas na maneira como os professores olham para os seus alunos, como dialogam com eles.

Quando digo olhar, não é simplesmente falar, mas falar olhando nos olhos. É aquele olhar que diz para os seus alunos: ‘Eu estou te vendo, eu reconheço a tua presença, e não estou querendo que tu sejas igual a mim. Mas que tu sejas capaz de dialogar comigo’. Essa é a parte mais bonita do processo educativo e, certamente, a mais difícil.

Após quase 21 anos da publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, quando relatora, quais avanços tivemos e ainda estamos vivenciando?

É importante falar que estou aposentada e, hoje, não estou dentro das escolas. O que posso referir é sobre uma sociedade que começa a se formar no século 16; são muitos anos, muitos séculos a serem analisados, criticados. E vejo o que daquelas bases deve continuar e o que deve ser superado. É evidente que muitos progressos se têm feito nas escolas. Há pesquisas, observações, trabalhos dos alunos e professores mostrando, mas ainda há resistências, segundo dizem os que estão no dia a dia da escola. E essa resistência ou adesão mostra os projetos de sociedade de professor(a).

Se é uma sociedade em que alguns grupos têm privilégios e outros são considerados subalternos ou se é uma sociedade em que cada pessoa, na sua particularidade, na sua diferença, na diferença do seu grupo social, grupo étnico-racial, se dispõe a conviver e dialogar com os demais, a fim de se construir a sociedade que é comum, que é de todos.

A ideologia do embranquecimento fez parte de sua vida pessoal por algum momento?

Está presente em toda a sociedade brasileira desde que ela se cria lá no século 16. Evidentemente, muitas vezes as escolas a reforçam. Não talvez pensando ‘vamos reforçar’, mas o convívio diário termina reforçando. Por isso é importante a presença e propostas das famílias, inclusive nas escolas. Eu, meus primos, os amigos de infância, de certa forma, fomos privilegiados. Eu, particularmente, porque tinha uma mãe professora.

Nasci num bairro [em Porto Alegre] que era conhecido até há pouco tempo como a Colônia Africana. Hoje, daqueles habitantes originários, lá dos anos 1900 que adquiriram suas casas e permanecem, que eu saiba somos três famílias. E como aconteceu em outras cidades, os migrantes europeus, quando começam a vir para o Sul, se dirigiam para os bairros mais simples, mais pobres, onde estavam os afrodescendentes e onde foram acolhidos. Então, na minha infância eu tive amiguinhas, vizinhos próximos, judeus, descendentes de espanhóis e a minha mãe até amigas russas teve.

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Hoje, ao se pensar em combater a evasão escolar, quais aspectos devem ser levados em conta?

Devem ser levados em conta o projeto de sociedade que a escola está construindo com seus alunos e o projeto de sociedade dos professores. Não para o professor impor o seu projeto, mas para colocar em diálogo com o projeto que os alunos trazem, suas famílias e as do bairro, dos grupos sociais a que pertencem e que frequentam. Não é uma coisa simples porque não é um projeto que tem de ser transmitido, embora muitas vezes isso aconteça. Talvez a nossa tendência de professor é transmitir o nosso projeto, o nosso grupo social, e nem sempre conseguimos colocar em diálogo o nosso projeto com os outros que estão na sala de aula com diferentes pertencimentos, não só étnico-raciais. Existem muitas formas de ser uma pessoa, que são influenciadas por outras formas que vão sendo construídas, por exemplo, a partir do diálogo com outras pessoas, seja da própria família, vizinhos, amigos de escola e do trabalho.

Ela [escola] é uma parte importante, sem dúvida alguma, para a construção do papel de cada um na sociedade, visando a construção do que é comum a todos, resguardadas as diferenças. Quer dizer, permite a partir do seu grupo social e étnico-racial cada um ser o que é, contribuindo, assim, para a construção da sociedade. Não é fácil, uma vez que temos certas tentativas de predominância de um grupo social. Mas é possível.

Ao ocorrer casos de racismo na escola, quais conselhos pode dar visando a conduta da direção escolar, coordenação e docência?

Não sei se posso dar conselhos porque cada situação é uma situação. São comunidades distintas, experiências distintas. Mas, no geral, pelo menos nas experiências que tenho observado, é preciso ter muita paciência e abertura dos professores, quer dizer, abertura ao diferente, ao distinto. E o próprio papel do professor [precisa ser refletido] no ensino que propomos com os alunos. Por exemplo, estamos dando referências para que eles construam a sua própria vida e ajudem a construir a sociedade? É uma atividade das mais complexas.

Enquanto estabelecimento de ensino, é muito mais fácil a gente propor um único projeto de sociedade do que colocar em diálogo distintas propostas. Mas os professores, notadamente professoras nos anos iniciais, têm sido guerreiras e guerreiros.

Retomando o período em que foi relatora e coordenadora das Diretrizes, há algum momento curioso ou marcante?

Penso que o interessante e importante foi a possibilidade que tivemos enquanto grupo de componentes da comissão organizadora das Diretrizes Curriculares do convívio com a professora Marília Ancona-Lopez, que é eurodescendente; a professora Chikinha Paresí, pertencente ao povo indígena Paresí; com o professor Jamil Cury, que é também eurodescendente; e eu, afrodescendente.

Então, tivemos pessoas com distintas experiências sobre o Brasil, inclusive docentes. Vínhamos de diferentes regiões — aqui não só na percepção de pertencimento étnico-racial ou social, mas também nas experiências em escolas públicas, particulares, urbanas e rurais. Eu vinha do Rio Grande do Sul. Na ocasião, era professora na Universidade Federal de São Carlos, no interior de São Paulo. A professora Marília Ancona-Lopez era professora em São Paulo. O professor Jamil Cury de Minas Gerais. E a Chikinha vinha do centro do país, Mato Grosso. E tínhamos tido oportunidade de viver ou conviver fora do país, como visitas ou bolsistas. Fizemos muitas consultas presenciais ou por meio do envio de sugestões escritas. Lembro que participei de uma [consulta] no interior de São Paulo, e que os professores reuniram a comunidade. Tinha até avô de criança. Quer dizer, a comunidade se fez presente naquela região.

O que tem feito ultimamente? Podem achar que esteja descansando, mas imagino que sempre a procuram. E o que vislumbra para os próximos anos?

Pensastes que estou descansando? Não estou cansada [risos]. Mas estou vivendo essa parte da vida que não é do trabalho formal. Continuo conversando com as pessoas que estão interessadas, às vezes escrevo, organizo meus livros e documentos, e convivo no decorrer do dia a dia.

Ao falar do modo de vida indígena do passado em relação aos tempos atuais, Ailton Krenak coloca que estamos sempre em movimento, agregando experiências.

Estamos sempre em movimento é um pensamento do povo Zulu: eu estou e sempre estive em movimento; quer dizer, o ser humano não está parado. Mesmo quando parece que está parado, está andando. Pode ser que não com as pernas, mas com o pensamento, certamente.

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