NOTÍCIA
Na cerimônia, o professor destacou seis direitos essenciais para garantir o futuro; presidente de Portugal esteve presente com atos de honrarias
No dia em que completou 70 anos, em 12 de dezembro, o professor António Sampaio da Nóvoa deu a sua ‘aula final’ como servidor público da Universidade de Lisboa, em Portugal, e escolheu ‘Liberdade’ como título da cerimônia — ao chegarem aos 70, os professores têm de se aposentar compulsoriamente. Mas, em suas próprias palavras, não foi exatamente ‘uma lição’, muito menos ‘a última’. “Isto foi e é uma continuação”, afirmou na jubilação oficial.
Com uma boa dose de emoção, Nóvoa e alguns convidados apresentaram uma espécie de resumo da carreira do acadêmico português. Contudo, não houve tom de despedida, pois todos sabem que novos capítulos estão por vir. Afinal, estudar e aprender são intrínsecos a quem ele é. “Não se estuda para alguma coisa. Mas por sermos humanos”, disse o professor agora jubilado.
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Em seu discurso, Nóvoa afirmou que, “se fosse sensato”, teria se limitado a agradecer as homenagens do dia e os apoios que recebeu durante sua trajetória. Preferiu, em vez disso, continuar a fazer provocações e defender ideais. Afinal, ser uma pessoa livre não o isenta de responsabilidades. “Liberdade significa para mim participação, entrega, compromisso e justiça social”, explicou.
Ao partir para a aposentadoria da universidade, decidiu assumir duas ocupações, que vê na verdade como “duas obrigações”: lutar pelo futuro e pelos direitos humanos. Claro que o futuro virá mesmo que à revelia das pessoas, mas António Nóvoa se preocupa com a forma que ele desapareceu no horizonte. “Tudo se esvai num presentismo sem fim. A sociedade vive num frenesi de gestos, que se esgota no mesmo instante (…) É o entretenimento contra o pensamento”, resumiu.
A crítica ao fim de projetos coletivos de futuro cabe a vários setores, dos políticos aos professores, afinal, até a universidade que deveria ser uma instituição dos ‘tempos longos’ se rendeu a um ‘produtivismo de vistas curtas’. “Como explicar a ausência de futuro? Será que face a tantas incertezas e tragédias só conseguimos nos refugiar no presente e renunciar ao futuro?”, questionou.
Imaginar um futuro melhor, pode ter até certa dose de ingenuidade, mas o acadêmico defende que a esperança deve sim ser cultivada. “As máquinas podem fazer tudo e mais alguma coisa, mas jamais poderão cultivar a esperança. Porque a esperança implica uma consciência do futuro, e essa é uma característica intrinsecamente humana”, disse.
Para Nóvoa, a grande fronteira da liberdade e do futuro são os direitos humanos. E embora nem os direitos consagrados pela Declaração da ONU de 1948 tenham sido plenamente alcançados mundo afora, é hora de as sociedades passarem a se preocupar com alguns novos pontos.
Hoje precisamos de um humanismo mais do que o humano. Precisamos olhar para a natureza como parte da humanidade. Assistimos a uma irresponsabilidade coletiva de governos e cidadãos, uma inércia inexplicável, talvez na crença de que um milagre tecnológico irá nos salvar. Mas ou nos responsabilizamos pela proteção do nosso espaço comum, ou o lixo do presente condicionará tragicamente o futuro.
Um dos fatos mais estranhos é a forma como colocamos nossos dados, privacidade e até liberdade nas mãos de oligopólios digitais. O 5º poder está dominando todos os outros. Precisamos de infraestruturas comuns. É urgentíssimo mobilizar as universidades e as ciências para combater o negacionismo, valorizar a ciência pública e cidadã. Junto com a música, a ciência é a única linguagem comum que nos resta. Sem ciência, não há liberdade.
Dizer que pertencemos todos à humanidade sem consequências é hipócrita. Respeitamos a liberdade de circulação de capitais e mercadorias, mas ignoramos a liberdade de circulação de pessoas. Tragédias no mar e muros da infâmia persistem. Muitos dos problemas dos países mais pobres têm origem em séculos de exploração colonial e décadas de injustiças climáticas. Os direitos humanos não podem ser divididos em fatias.
Como é possível recusar ou negar o direito de sermos quem queremos, de vivermos como quisermos? Atacar alguém por ser diferente, esmagar línguas, culturas, povos… O mais básico dos direitos — vivermos e morrermos segundo nossa escolha — tornou-se um tema fraturante. A intolerância é sempre fruto do desconhecimento. Precisamos de uma sociedade convivial, com uma liberdade que seja também libertadora, porque ela não se esgota em mim.
Um dos sonhos mais antigos da humanidade é a emancipação do trabalho. Os impressionantes avanços tecnológicos nos levam a pensar numa sociedade do ócio. No entanto, isso pode levar a novas fraturas sociais, com largas fatias da população condenadas à exclusão e à pobreza. É um debate que precisa ser aberto já, para antecipar as transformações que já vêm.
A esperança de vida é o acontecimento mais extraordinário do nosso tempo. Em um século, em Portugal, ela mais que duplicou. Isso tem consequências em tudo, mas não estamos sendo capazes de pensar e nos adiantar ao futuro. Como construir uma vida com a presença simultânea de várias gerações? Como sentar à mesma mesa com seis gerações diferentes?
Com tanto brilhantismo e conquistas no passado, Nóvoa encerrou oficialmente sua contribuição como servidor público olhando para os dias que virão. “O presente é uma passagem, o futuro é um caminho”, disse.
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A cerimônia foi presidida pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e teve um lado de pompa e honrarias. Nóvoa recebeu a Grande Cruz da Ordem de Camões e foi aplaudido de pé mais de uma vez. Mas como um professor querido, próximo aos alunos, poucos minutos antes de começar o rito, o homenageado passeava pelos corredores distribuindo apertos de mão, abraços e sorrindo para fotos dos que esperavam pela aula, entre antigos companheiros de academia e jovens universitários.
No seu discurso, o presidente português destacou que Nóvoa é “emérito desde sempre” na excelência pedagógica, na afirmação das pessoas e das comunidades. Também classificou como irrequieto e visionário: “Um cidadão do universo”, afirmou.
O ex-ministro da Educação brasileiro Cristovam Buarque enviou uma carta lida pelo embaixador do Brasil em Portugal, Raimundo Carreiro, na qual chamou António Nóvoa de “humanista navegador da contemporaneidade”. “Nestes tempos de tormentos tecnológicos, Nóvoa tem sido como um ponteiro da bússola, com conteúdos e oratória cativantes, falas que deslumbram e despertam”, dizia a missiva. Ao agradecer a carta, o pesquisador português brincou que “ser brasileiro é só questão de começar”. “No Brasil encontrei a minha outra pátria. Sou brasileiro”, falou Nóvoa.
Em um vídeo gravado, além de agradecer por todo o trabalho de Nóvoa, a diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, disse esperar do antigo colega ainda mais frutos em breve: “A aposentadoria vai permitir que faça um trabalho intelectual ainda mais livre, além de passar mais tempo com a família”.
Para além dos que falaram ao microfone, o homenageado fez questão de lembrar de seus estudantes, muitos dos quais presentes na plateia. “Tive sorte, desde o primeiro dia como professor; os meus alunos foram sempre a minha respiração. Foi sempre a partir deles e com eles que fiz perguntas, procurei respostas. Que todos se sintam reconhecidos.”
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