Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 01/07/2024
Enquanto a China e a Indonésia têm se articulado contra o domínio da língua inglesa em seus territórios por meio da IA, Brasil ainda não se movimentou
O assunto da inteligência artificial (IA) — e seus impactos na sociedade — pode parecer mais um modismo tecnológico, daqueles que impõem a sistemas de educação gastos exorbitantes na compra de equipamento ou formação de professores. Não faltam exemplos no passado de aquisições assim precipitadas ou desconectadas dos projetos pedagógicos das escolas, que surtiram pouco efeito na aprendizagem.
Alerto que vivemos um momento diferente. Menosprezar o impacto dos diversos sistemas de inteligência artificial na pesquisa, interação com os meios digitais, privacidade e aprendizagem é hoje uma atitude perigosa. A tecnologia exerce uma presença implacável e, para piorar, muitas vezes invisível, no cotidiano do ser humano, queiramos ou não. É impossível escapar da IA. Basta nos atentarmos às que atuam nos buscadores (como o Google), nas redes sociais (como o TikTok), nos aplicativos de bancos ou nos chatbots como o ChatGPT.
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Ao contrário de outras invenções, as mudanças causadas pelo desenvolvimento da inteligência artificial são consideradas tão profundas quanto as da luz elétrica no século 20 (que mudou drasticamente a economia e vida cotidiana nas cidades). Trata-se de uma tecnologia de impacto sistêmico, ainda na sua ‘primeira infância’ de desenvolvimento. Provavelmente a comparação mais recente, em termos de proporção, é com o surgimento da internet, há quase 30 anos.
Tenho alertado o leitor para diversas questões éticas surgidas da IA em outros artigos desta coluna. Mas a discussão sobre a regulamentação dos países no uso e criação da inteligência artificial é ainda recente, além de muitas vezes nebulosa e pouco clara. Por outro lado, é uma peça fundamental para que os educadores compreendam as consequências dessa tecnologia no mundo.
Por que a inteligência artificial precisa ser regulamentada pelas nações? A IA já é um fator determinante de desenvolvimento econômico e de poder social, político e cultural para os países; por outro lado, como toda tecnologia, não é neutra e contém em si vieses dos mais diversos. Regular a inteligência artificial tem sido a busca do equilíbrio entre a manutenção da competitividade dos países em seu desenvolvimento — e consequente importância no cenário mundial — e a proteção dos direitos dos usuários.
Como exemplo, hoje os sistemas de inteligência artificial funcionam em grande parte na língua inglesa — considerando não só o aspecto de comunicação, mas de construção de pensamento, cultura e lógica que toda língua exerce. Países que têm no seu bojo disputas culturais envolvendo mais de uma língua oficial, ou então entre uma língua oficial e outras nativas, enxergam com receio o desenvolvimento global da IA concentrado no Vale do Silício, Estados Unidos.
É o caso da Indonésia, cuja língua oficial é o indonésio para seus 300 milhões de habitantes. Entretanto, dentre outras 200 línguas em atividade no arquipélago, o javanês tem sido levado à extinção ao ser ‘engolido’ por línguas globais. Há uma resistência interna no uso de sistemas globais de IA generativa (como são chamados aqueles como o ChatGPT, que ‘geram’ conteúdo) por padronizarem a cultura baseado no inglês. Como o país pode garantir o desenvolvimento de um sistema local que valorize o javanês? Este é um debate real e em curso por lá.
A China, por sua vez, trava uma verdadeira batalha político-cultural pela hegemonia na inteligência artificial. O Plano de Desenvolvimento da Inteligência Artificial feito pelo país em 2017 tem como objetivo criar no mercado global o exemplo de uma sociedade governada e movida pela IA. Historicamente, o país culpa os Estados Unidos pela construção de sua imagem no exterior, devido ao domínio da cultura e mídia globais. A China agora agarra a oportunidade dos sistemas de inteligência artificial se tornarem um novo ‘soft power’ de dominação — o poder de um país sobre outros por meio da língua, cultura e educação.
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O ‘soft power’ também pode ser compreendido, neste caso, como a capacidade de sistemas dragarem a cultura, ou os ‘dados’ de uma nação para outra. A recente tentativa de proibição do TikTok pelo parlamento dos Estados Unidos diz respeito à imensa quantidade de dados que o aplicativo tem potencial de enviar ao governo chinês. A alternativa americana, não à toa, é que a empresa venda parte dela a um sócio nascido nos Estados Unidos.
A União Europeia e os Estados Unidos saíram na frente na regulação da IA, com modelos estruturalmente diferentes. A primeira criou uma agência reguladora central; já o segundo enviou recursos às agências existentes para que essas controlem os impactos éticos por área (educação, saúde, meio ambiente etc.). O Brasil tem um projeto inspirado no modelo europeu em tramitação no Senado e agora também aberto ao debate público (pela internet); para especialistas, entre muitas questões, o documento brasileiro foca nos riscos, mas não cuida de proteger a capacidade interna de desenvolver uma IA com a nossa ‘cara’.
A ideia de que as tecnologias devem ser criadas à luz de culturas locais não é nova — o engenheiro de Hong Kong, Yuk Hui, já a defendia em sua obra Tecnodiversidade (Ubu Editora), desde 2019. No caso da inteligência artificial é ainda mais evidente a relação entre cultura e desenvolvimento técnico, e como essa peça é fundamental no jogo geopolítico global. Esse é um assunto também para ser debatido na escola — sem nenhum grande investimento financeiro típico de um modismo passageiro.
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