Passar o turno inteiro de aulas contendo a vontade de ir ao banheiro. Abdicar da hora do recreio no pátio e se manter em sala de aula com a desculpa, caso alguém pergunte, de estar adiantando o dever de casa. Não poder participar das brincadeiras que deseja e nem socializar com quem prefere. Todas essas decisões, movidas pelo medo de ser novamente espancada pelos colegas de escola, foram tomadas por Luma quando criança em uma escola no interior do Ceará entre as décadas de 1980 e 1990. Além da violência física e verbal, ela ainda tinha suas queixas deslegitimadas pelos professores e, em casa, não podia contar para a família o que ocorria para não sofrer mais violências e acabar tornando real seu outro medo, ainda maior do que o de apanhar: deixar a escola.
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Luma precisou trocar de turno. Negociou com a direção do colégio e foi, ainda menor de idade, cursar o ensino noturno com os adultos para sofrer menos perseguição. A situação melhorou um pouco. Dos primeiros anos na escola até o final do doutorado, tudo foi extremamente difícil na trajetória educacional de Luma Nogueira de Andrade, primeira pessoa transgênero a concluir o doutorado em rede pública no Brasil e autora do livro
Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa (Metanoia Editora). É essa dificuldade, movida pela ignorância e pelo preconceito, que precisa ser combatida porque, ainda hoje, crianças e adolescentes como Luma continuam vendo a escola como espaço de medo, exclusão e violência.
“Onde esse corpo travesti vai ele é pedagógico, modifica os espaços, principalmente quando tem consciência política e atua para a transformação”, explica Luma. Além de doutora em pedagogia, ela vem transformando espaços da docência, da educação básica até a universidade, onde leciona hoje, a partir de sua presença e também de sua atuação em cargos de gestão. Em 2012, Luma também se tornou a primeira travesti docente efetiva de uma universidade pública federal, no caso, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Nesta entrevista à revista Educação, Luma revela um dado potente de sua atuação como professora: “ao contrário de colegas e gestores, que muitas vezes me discriminaram, nunca tive problemas com meus alunos. Pelo contrário, sempre fui muito querida por eles”. A boa relação com os estudantes se deve, em parte, à abertura para as diferenças que, se bem trabalhada, costuma se manifestar nos jovens.
Luma Nogueira de Andrade, primeira pessoa transgênero a concluir o doutorado em rede pública no Brasil: “Onde esse corpo travesti vai ele é pedagógico, modifica os espaços”
Foto: arquivo pessoal
Educar para as diferenças: dever de toda escola
O resultado da hostilidade que pessoas trans encontram dentro da escola é o baixo índice de conclusão dos estudos que esta população apresenta. De acordo com a pesquisa de 2020 da Rede Nacional de Pessoas Trans no Brasil, 64,1% dos transexuais não concluíram o ensino médio. Para especialistas como Luma Nogueira de Andrade, é importante olhar criticamente para o termo ‘evasão’ ao se referir a essa questão, pois “dá a impressão de que houve uma escolha por ‘abandonar’ a escola quando, na verdade, há uma expulsão por meio da violência”, explica.
Essa realidade vai de encontro ao direito fundamental à educação e também a outros dispositivos legais que buscam garantir a permanência das pessoas trans na escola. É o caso da Resolução Nº 2, de 19 de setembro de 2023 do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, que preconiza, entre outros pontos, o uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero, o respeito ao nome social requerido pelo estudante e orienta: “Nos casos em que as instituições de ensino estiverem atuando para impedir o acesso ou negarem, seja a garantia do uso do nome social e/ou o acesso a banheiros e espaços segregados por gênero de acordo com a identidade e/ou expressão de gênero do/da estudante, orientamos aos pais e responsáveis legais que efetivem denúncias para os órgãos de proteção às crianças e adolescentes”.
Apesar de indesejável, o caminho do conflito legal já é uma possibilidade para famílias e estudantes trans em caso de escolas que não ofereçam condições dignas e acolham as diferenças. “É preciso entender a escola como lugar da pluralidade, combater a ideia de ‘caixinhas’ — que todo mundo que entra ali tem que sair padronizado”, defende Ismael Lima, professor de filosofia e sociologia na rede estadual do Ceará.
Em 2017, Ismael criou o Projeto Dandara, que buscava discutir sexualidade, afetividade e diversidade e estimular o debate sobre esses temas no ambiente escolar, o que resultou, ao fim do ano letivo, na produção de um seminário e, depois, em diversas intervenções artísticas.
“Acredito que o principal efeito do projeto tenha sido a tomada de consciência sobre o combate às discriminações, a percepção de que faltam espaços, mas que quando esse espaço é oferecido, as pessoas se interessam, têm o desejo de conversar sobre isso, de entender”, explica o professor.
Ismael Lima, professor na rede estadual do Ceará, criou o Projeto Dandara para discutir o tema no ambiente escolar
Foto: arquivo pessoal
Ismael conta, ainda, que a partir do projeto Dandara — nomeado em homenagem à travesti Dandara dos Santos, assassinada violentamente em Fortaleza em 2017 —, estudantes que tinham dificuldades de se colocar em relação à sua sexualidade ganharam mais segurança para se afirmar. “Promover o encontro entre pessoas que enfrentam questões parecidas já é muito valioso, são momentos para perceber que você não está sozinho. A partir do [projeto] Dandara, surgiram outros grupos de conversa, autônomos”, comenta o docente.
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Momento é de agir, e já há bons exemplos
Pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país com maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo. Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2022 foram 131 homicídios. Registraram-se 20 suicídios relacionados à discriminação e ao preconceito transfóbicos. Pernambuco foi o estado que mais registrou assassinatos, com 13 casos, seguido por São Paulo e Ceará, com 11 mortes cada.
Para Homero Henrique, que integrou no Ceará a Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional, o momento não é mais de discutir se pode ou deve discutir questões de diversidade e, sim, de encontrar as formas de fazer
Foto: arquivo pessoal
Paralelamente, o Ceará se destaca como pioneiro na implementação de medidas anti-lgbtfobia e na estruturação de questões de gênero no âmbito da Secretaria da Educação do Estado. O professor de geografia e mestre em políticas públicas Homero Henrique faz parte da história deste pioneirismo, tendo integrado a Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional (Codin) do estado, um dos primeiros órgãos no país a propor a discussão de gênero na área da educação básica pública.
“Já há bastante evidência de que em escolas cujo ambiente naturaliza violências lgbtfóbicas, machistas, racistas etc. há uma tendência a que os alunos percam o interesse, tenham queda nos rendimentos e até mesmo evadam. Para desenvolver educação de qualidade é preciso reconhecer e valorizar a diversidade. ‘Aceitar’ e ‘tolerar’ são termos que nem cabem mais na discussão”, explica Homero, que é doutorando em sociologia, com foco em questões de gênero.
O docente, que trabalhou com formação de professores e assistiu a muitas conversas entre escola e responsáveis, acredita no caminho do diálogo quando estudantes trans e suas famílias discordam em relação a como a escola deve se posicionar.
“É comum a escola silenciar quando a família se opõe à identidade do filho ou da filha. Mas também já presenciei diálogos entre escola-pais. Muitas vezes, os familiares não têm o conhecimento mínimo para entender o processo pelo qual o aluno está passando. Quando conseguimos tocar o íntimo desse pai, dessa mãe, é muito provável haver entendimento, termos êxito nas demandas do jovem. Agora, quando a escola silencia, colabora com o estado atual, não promove mudanças”, conta Homero.
Ainda de acordo com o professor, o momento não é mais de discutir se pode ou deve discutir questões de diversidade e, sim, de encontrar as metodologias, as formas de fazer. “Compreender que essas questões de gênero também podem ser consideradas conteudistas, mas não se limitam ao conteúdo programático. Projetos culturais, artísticos e também a linguagem usada na escola, a projeção de que carreira que meninos e meninas devem seguir, tudo isso, que está presente no dia a dia, também são formas de abordar esses temas e avançar na discussão”, defende o docente.
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Autor
Ana Gabriela Nascimento