Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 06/12/2022
Campos de Goytacazes, 12 de setembro de 2042
Ainda vivos e lúcidos, conheci alguns dos vultos da educação, embora não me perdoasse de, nos meus tempos de África, ter estado paredes-meias com Paulo Freire e não o ter encontrado.
Para compensar essa perda, recebi na Escola da Ponte dos idos de noventa, a Fátima, sua filha. Acompanhada do marido Ladislau, identificaram nos mais discretos movimentos e artefactos da Ponte a presença do mestre.
Fui até à Escola da Vila, em demanda da filha Madalena. Mas só chegaria a ter ensejo de a encontrar, quando com ela partilhei a mesa de um congresso. Foi em Mairinque, lembro bem, e era como se tivéssemos nos conhecido há mil anos.
A filha do mestre o invocava. Nela Freire se manifestava. Até o momento em que o senso comum de um professáurio a interpelou. Fazíamos referência à práxis freiriana da Ponte. Poupo-vos ao teor da intervenção da criatura. Dir-vos-ei somente que carregava meia dúzia de lugares-comuns do discurso pedagógico, para rematar com uma disparatada afirmação.
Serenamente, a Madalena retorquiu:
“Faça o favor de fundamentar o que acaba de dizer”.
O professáurio titubeou alguns dos jargões mais conhecidos das ciências da educação.
“Fundamente a sua afirmação” – repetiu a Madalena.
O indivíduo apresentou credenciais de ‘doutor’, mas… não fundamentou.
No final da sessão, fraternalmente, me acerquei dele e mantivemos uma conversa afável, sem que ele manifestasse consciência de que tagarelara decoreba de tratado acadêmico, sem contrapartida praxeológica. Era mais um representante da estranha e perniciosa espécie dos freirianos não-praticantes.
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Nesse tempo, a dialética freiriana manifestava-se de três modos. A primeira era a ‘tradicional’: reflexão-ação-reflexão.
A reflexão e o planejamento só fariam sentido se agíssemos. A reflexão-na-ação manifestava-se num saber-fazer transformador da realidade e produção da história. A reflexão na ação acontecia quando concomitante com a vivência, a situação, ou quando retrospetiva. Nesse sentido, interpretávamos a dialética freiriana de outro modo: ação-reflexão-ação.
Zarpávamos da ação, de práticas já testadas e consideradas criações úteis, para conseguirmos operar mudança. Consolidada a mudança, empreendíamos caminhos de inovação. Íamos em demanda de algo efetivamente inédito.
Ao produzir inovação, novos modos de ensinar e de aprender, questionávamos práticas hegemônicas, demonstrávamos a origem socioinstitucional do insucesso escolar, interpelávamos o discurso da ‘naturalização’ de fenômenos educacionais, como o da exclusão escolar e social.
Adorno denunciou ‘determinações objetivas da subjetividade’, que considerava responsáveis pela perenização da formação social vigente. O mundo era movimento, transformação da realidade social, construção humana, mas a terceira versão da ‘dialética’ era estática, reduzia-se a uma monótona e supérflua sequência: reflexão-reflexão-reflexão.
Disso não saíam os não-praticantes. Eram teoricistas inveterados, perdiam-se no labirinto das citações de citações, na teorização de teorias teorizadas, e ‘inventando’ novas designações para velhos conceitos.
Apesar dos pesares, Paulo Freire era celebrado, dialogicamente praticado. E Gadotti, um dos grandes reintérpretes de Freire, advertia que a prática dialógica se situava nos antípodas da pedagogia metafísica. Dizia-nos que a constituição do homem acontecia pela ascensão da consciência coletiva efetivada de maneira concreta na ação, numa interação que dava existência ao próprio homem.