NOTÍCIA
Para a diretora da Faculdade de Educação da USP, apenas especialistas na história da educação reconhecem autores da Escola Nova. Diz que Vygotsky talvez seja hoje mais estudado do que o próprio Piaget. Sobre autores negros, destaca o reconhecimento, ainda que pequeno, de Nilma Lino Gomes e Sueli Carneiro
Publicado em 23/11/2022
Carlota Boto é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), e desde julho deste ano exerce o cargo de diretora. É graduada em pedagogia e história, mestre em história e filosofia da educação e doutora em história social. Nesta entrevista, ela aponta os principais autores brasileiros e estrangeiros que na atualidade estão presentes na formação dos docentes. Como historiadora da educação, contextualiza o momento atual e a chegada da tecnologia digital à sala de aula, apontando a urgência de políticas públicas para o enfraquecimento do abismo digital no Brasil. Confira.
A educação brasileira avançou no tocante à expansão das oportunidades de ensino e avançou também na qualidade. Eu sei que parece contrário à perspectiva geral que se tem sobre o assunto, mas nós precisamos tomar cuidado para não termos uma visão anacrônica da realidade. No momento em que a escola era tida como melhor, muita pouca gente ia para essa escola. Há uma falsa percepção de que teria havido uma queda nos padrões da qualidade de ensino. Porém, nunca tivemos um ensino tão abrangente como o que temos hoje. É claro que é preciso avançar, sim. São inúmeros os desafios em direção a uma escola de qualidade. Mas não podemos entrar na lógica desse discurso de terra arrasada. A educação brasileira não é um fracasso, embora haja muito a ser feito por ela.
O nosso desafio hoje é, tendo todas as crianças e adolescentes nas escolas, aprimorar o padrão de qualidade dessa escolarização.
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Eu penso que, do ponto de vista do governo federal, a atual política é sim de terra arrasada. Qual é o projeto pedagógico do governo Bolsonaro? Ele fala em alfabetizar por um aplicativo, ele disse isso recentemente em um debate; e tem a política de homeschooling. Ou seja, como política de escolarização, ele propõe a desescolarização. É uma contradição nos termos. Além do homeschooling, há as escolas militares. Quando se propõem escolas militares desconsidera-se todo o debate sobre as teorias pedagógicas e pensa-se em reinstalar um modelo autoritário e ultrapassado de educação escolar. Nesse sentido, considero a atual política federal um retrocesso.
Oferecer um tipo de formação que possibilite uma perspectiva de integração transdisciplinar dos conteúdos curriculares. Acredito que devem ser combinados a formação geral, ou seja, os fundamentos da educação – a história, a filosofia, a psicologia, a economia da educação – e a formação específica, que abarca, por um lado, a didática e as metodologias de ensino, e por outro lado, também a gestão escolar. Precisamos formar pedagogos capazes de alfabetizar e de gerir um sistema de ensino.
Precisamos formar professores que conheçam a psicologia do desenvolvimento, a filosofia e a história da educação, mas que saibam também preparar a aula do dia seguinte. Nesse sentido, a formação tem de ser integral nessa dinâmica de combinação da formação geral com a formação específica.
Paulo Freire é hoje um ícone dos estudos da educação no Brasil, portanto, um autor bastante presente nos cursos de formação de professores. Vygotsky talvez seja hoje mais estudado do que o próprio Piaget. Há alguns autores brasileiros que são muito trabalhados, como, por exemplo, o Dermeval Saviani. Mas eu diria que há hoje uma primazia dos estudos que tomam a educação como uma variável política. Eu não poderia, entretanto, deixar de mencionar Magda Soares nos estudos sobre alfabetização, Diana Vidal na história da educação, Vitor Paro na política educacional, José Sérgio Fonseca de Carvalho e Julio Groppa Aquino na filosofia da educação. Penso que esses são os autores que estão no repertório do discurso da educação no Brasil, atualmente.
Acredito que os autores da Escola Nova perderam espaço. Depois de reinarem durante muito tempo, hoje praticamente não se fala mais deles.
O governo federal, por exemplo, discute o método fônico, mas não menciona em momento algum o papel da Maria Montessori na constituição desse método. Jean-Ovide Decroly é outro autor completamente esquecido. Fala-se da democracia na escola, mas nos esquecemos de nos reportar ao pensamento de John Dewey. No tocante à Escola Nova no Brasil, acontece a mesma coisa: apenas os especialistas na história da educação brasileira trabalham autores como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho ou Paschoal Leme. Foram esquecidos. A meu ver é uma perda.
Há três autores de quem gosto muito: o português António Nóvoa, que aborda a questão da profissionalidade docente, a história da profissão professor e seus desafios na contemporaneidade; François Dubet, francês, que indaga sobre o discurso pedagógico e o lugar que pode haver nele para a temática da escola justa; e o belga Jan Masschelein, que, em defesa da escola, traz um debate que resgata os significados de uma escola na qual “há sempre algo sobre a mesa” – para usar as palavras dele. E esse algo que existe sobre a mesa são os conteúdos culturais que uma determinada sociedade entende por bem transmitir às gerações mais novas. Concordo com a visão de Masschelein, exposta no belo livro intitulado Em defesa da escola [ed. Autêntica]. Esses três autores têm ganhado bastante espaço no debate pedagógico.
Em O que é uma escola justa? [ed. Cortez], Dubet diz que ela reproduz, em seu interior, as injustiças da sociedade. Ele se coloca contra a ideologia do mérito, da meritocracia, e vai dizer que o grande problema da escola é que ela acaba por excluir pessoas que têm a responsabilidade de formar. É preciso pensar qual seria o tipo de escola que poderíamos caracterizar como justa. Uma escola cooperativa, que substitua a competição pela integração, cooperação. Ele vai apontando vários modelos do que seria essa escola justa.
Mas não é para reproduzir em sala de aula. Há mecanismos que trabalham aquilo que é uma tendência e que vai na contramão, justamente para produzir o diferente, a contraideologia.
Sim. Nilma Lino Gomes e Sueli Carneiro são autoras importantes no debate da educação hoje. São lidas menos do que merecem, do que seria necessário, mas são autoras que vêm ganhando pertinência no debate.
Sim, hoje o debate pedagógico recebe muita concorrência de teóricos de outras áreas que se prestam a falar sobre o ensino. Assim, muitos autores irão problematizar as novas tecnologias digitais e seus usos em sala de aula. Porém, penso que os mais poderosos discursos externos à educação são aqueles provenientes do campo das neurociências e da economia. São muito fortes os discursos dos economistas e neurocientistas discorrendo sobre educação. São áreas correlatas, mas que não dialogam propriamente com o campo da pedagogia, no sentido mais clássico. Já os discursos sobre as tecnologias, embora partam de outro lugar, dialogam mais diretamente com as produções no campo da educação.
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É uma revolução. A escola moderna surge com a tecnologia do livro impresso. A imprensa, de uma certa maneira, criou a ideia da escola como a concebemos hoje. A escola veio diretamente como uma resposta ao desafio que era a leitura do livro impresso, que expandiu por completo as oportunidades de leitura. Os trabalhos de Roger Chartier mostram, por exemplo, que na França houve um movimento de alfabetização espontânea, e do mesmo modo que hoje se tem medo dos conteúdos nebulosos que vêm pela internet, as pessoas tinham medo do que vinha pelo livro. A escola surgiu para regrar a leitura.
Com o advento dos computadores e sobretudo da internet, pela primeira vez a tecnologia do livro impresso foi efetivamente posta em causa. O lugar do conhecimento se deslocou. Trata-se de uma mudança que não é apenas de forma, mas também de conteúdo. Os modos de acessar o conhecimento foram substancialmente deslocados, transformados. A escola terá de aprender a lidar com isso. Hoje, não se trata apenas de discutir se vai usar o computador em sala de aula e qual técnica será utilizada. Trata-se de que as novas gerações aprendem de uma nova maneira. Elas estão acessando o saber por outros registros. Até que façamos, como educadores, que essas novas gerações se sintam atraídas pela tecnologia do livro, precisamos dialogar com as tecnologias digitais.
Sim, porque implica a adequação do currículo e das formas de organização da aula, tendo em vista essa nova dimensão. Um autor que aborda muito bem essa questão é o António Nóvoa. Ele fala em como se dará uma certa metamorfose da escola tendo em vista a incorporação dos novos registros que estão postos pelo mundo contemporâneo.
A questão da tecnologia vinha vindo, mas foi com a pandemia que vimos como temos dificuldade em lidar com ela. É uma questão geracional, os jovens lidam com isso com mais facilidade. As mudanças curriculares são sempre bem-vindas. Precisamos, entretanto, tomar alguma cautela com os modismos. Creio que sim, os currículos precisam mesmo incorporar o debate sobre os usos das novas tecnologias em sala de aula. Mas eu espero que as antigas tecnologias, que historicamente perfizeram a história da escola, não sejam postas de lado por causa do recurso à internet. Deve-se acessar a rede? Sim, mas o contato com o livro persiste sendo fundamental.
Nós vimos a exclusão no momento da pandemia. Mesmo na universidade era diferente a questão dos acessos, seja aos tablets e laptops ou à utilização da banda larga por crianças, jovens e, no caso da universidade, por adultos de baixa renda. Os governos precisam investir na concessão de tablets e laptops, bem como facultar a internet banda larga para crianças e jovens de baixa renda. Tem de haver investimento e políticas públicas nessa direção. Precisa haver ainda esforços encetados em direção à formação de professores. Eu tendo a achar que esse será um problema provisório. Com o tempo, o custo desses aparelhos vai diminuir e talvez daqui a 10 anos os professores e professoras estejam plenamente habilitados a lidar com o circuito digital. Porém, é preciso que o estado dê condições para que todas as camadas da sociedade possam acessar esses recursos, do contrário cria-se um abismo digital.