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João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 01/12/2022

Fé de superfície

Padre Vieira, para entender a fé de hoje

shutterstock_707694577 - destaque Foto: shutterstock

Padre Antônio Vieira (1608-1697) é, sem dúvida, um autor cânone em língua portuguesa. Não à toa, Fernando Pessoa, outro cânone, o chamava de imperador da língua portuguesa. Retórico por excelência, orador sarcástico, pregador exímio e jesuíta na essência, Vieira imortalizou-se como autor das literaturas brasileira e portuguesa por conta de sua prosa sermonística privilegiada, cuja linguagem meticulosamente trabalhada foi testemunho dos valores morais do Brasil colônia e também da alma de nossa gente.

Em seus sermões, padre Antônio Vieira não se limitou à pregação factual, à conversão dos cristãos ou à manutenção da fé; sua obra abordou temas políticos e sociais caros para seu tempo.

Polêmico e mordaz, Vieira encontrou dificuldades para fazer valer sua fé e seus princípios. No sermão do Quinto Domingo da Quaresma, Vieira questiona a fé hipócrita que é contrariada pelas próprias obras do suposto crente “…os cristãos erram em não concordar a sua vida com a sua fé: e qual é maior erro e maior cegueira? (…) Porque a fé é das coisas que não se veem (…) — e o não crer pode ter alguma desculpa nos olhos; porém, crer uma coisa, obrar a contrária, nenhuma desculpa pode ter”.


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Para ilustrar, o incômodo com essa crença frouxa que não se ajusta aos atos e às falas dos cristãos, o autor nos convida a entrar em um palácio nobre onde os ouvintes (e os leitores) testemunharão uma vida em desconformidade com a fé.

“Como estamos na corte, onde das casas dos pequenos não se faz caso, nem têm nome de casas, busquemos esta fé em alguma casa grande e dos grandes. Deus me guie (…) Entremos e vamos examinando o que virmos, parte por parte. Primeiro que tudo vejo cavalos, liteiras e coches; vejo criados de diversos calibres, uns com libré (uniforme de criados de casas nobres), outros sem ela; vejo galas, vejo joias, vejo baixelas; as paredes vejo-as cobertas de ricos tapizes; das janelas vejo ao perto, jardins, e ao longe, quintas; enfim, vejo todo o palácio e também o oratório; mas não vejo a fé.”

“E por que não aparece a fé nesta casa: eu o direi ao dono dela. Se o que vestem os lacaios e os pajens, e os socorros do outro exército doméstico masculino (a vestimenta dos outros serviçais) e feminino depende do mercador que vos assiste, e no princípio do ano lhe pagais com esperanças e no fim com desesperações, a risco de quebrar, como se há de ver a fé na vossa família? Se as galas, as joias e as baixelas, ou no Reino, ou fora dele, foram adquiridas com tanta injustiça ou crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se espremeram, haviam de verter sangue, como se há de ver a fé nessa falsa riqueza?(…)  Se as pedras da mesma casa em que viveis, desde os telhados até os alicerces estão chovendo os suores dos jornaleiros (trabalhadores que recebiam pagamento ao final do dia) , a quem não fazíeis a féria (a quem não concedíeis dias de folga), e, se queriam ir buscar a vida a outra parte, os prendíeis e obrigáveis por força, como se há de ver a fé, nem sombra dela na vossa casa?”

Padre Vieira, em seu discurso duro, mostra que a fé cristã não pode ser encontrada em casa onde reina a injustiça. Segundo o presbítero, não há crença sólida onde a riqueza é costurada na exploração do pobre. Em um jogo antitético, o sermão opõe o discurso de quem alia o poder a uma prática predatória e desumana. Assim, o eclesiástico condena fortemente os que dizem ter fé, mas não oferecem em vida um gesto razoável ao outro que corresponda ao discurso religioso professado. Para o clérigo, fé sem obras é o vazio, a mentira, a falácia, o engano.

Como jesuíta, Vieira condena o discurso jansenista em que a fé por si basta para salvar o homem. Para ele, não bastam a confissão de fé, o rito fervoroso, a presença nas missas e nos cultos, os cantos de louvores e as orações. Era preciso mais do homem de fé; era necessário que seu modo de vida se ajustasse ao valor cristão, que seus atos não condenassem o discurso.

Suas críticas encontram eco na obra do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que chama atenção para a mesma noção de fé vazia e instrumentalizada. Chamava-a de “religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior,(…); transigente e, por isso mesmo, pronta a acordos”.

Nesses novos tempos digitais, proliferam nas redes e na vida pública essa fé de superfície e de pompa, pouco séria e bastante instrumentalizada. Com gente se arvorando cristão, propondo que Deus esteja acima de tudo, mas com uma biografia incoerente com o discurso. Gente que bate no peito o orgulho cristão com a mesma força que elogia torturadores. Gente que não junta as duas pontas, a do gesto e da intenção, e não enxerga nessa fé oblíqua o cristo torturado e apaziguador.

Em recente reportagem da BBC News Brasil, colheram-se essas pérolas da fé instrumentalizada e colérica:

“é como se nós, cristãos, estivéssemos vivendo a própria ditadura dentro do templo”; “não reconheço mais a igreja hoje”; “o pastor abandonou a Bíblia pra falar de comunismo”; “é triste ver um lugar sagrado sendo corrompido”; “a perseguição contra os cristãos já começou no Brasil, só que dentro da própria igreja”.

Nessa superfície de fé flácida boiam também os que personalizam a fé e Deus. Lançam nas contas do Redentor os seus anseios e suas particularizações da crença. Se desejam uma vida próspera e abundante, creem que estejam em consórcio com o Altíssimo; se esperam que seus times ou seus candidatos vençam suas contendas, é porque estão comungados com o Todo-Poderoso nessas disputas. Se escolhem uma fé religiosa é porque o Senhor está nela, se largam um vício ou conseguem um emprego, foi obra da Providência Divina. Se detestam raivosamente um grupo social, é porque o Salvador não está com os inimigos.  E assim, vão ajustando suas fés e anseios às suas bênçãos, tornando Deus um títere de suas convicções menos religiosas do que oportunistas. Instrumentalizam a fé e o discurso, em um autoengano fervoroso.

Em muitos casos, nessa contemporaneidade confusa, a fé genuína se mistura à carregada de ódio e à coberta de particularização utilitária.

Padre Vieira – fora do púlpito e da vida, mas nas páginas dos livros – perguntaria com indignação: “Cristãos, se não obramos o que devemos, a quem adoramos? A quem cremos? A quem seguimos? (…)Se esta é a minha fé, e a minha fé é a verdadeira, as minhas obras por que são tão alheias dela, e tão contrárias?”

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