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Políticas Públicas

Na rede pública, bibliotecas escolares não funcionam corretamente

Pouco mais da metade das escolas do país têm uma biblioteca, aponta o Inep. Quando têm, é corriqueiro haver cadeados separando crianças, jovens, adultos e toda a comunidade escolar e a do bairro de milhares de livros. O que seria uma biblioteca se transforma em […]

Publicado em 21/10/2022

por Sandra Seabra Moreira

Pouco mais da metade das escolas do país têm uma biblioteca, aponta o Inep. Quando têm, é corriqueiro haver cadeados separando crianças, jovens, adultos e toda a comunidade escolar e a do bairro de milhares de livros. O que seria uma biblioteca se transforma em depósito de acervo ou até almoxarifado. Com raras exceções, a falta de bibliotecários provoca o funcionamento precário e improvisado desses ambientes de leitura.

“Aqui na cidade tem uma escola em que a biblioteca funciona, inclusive, com ‘Hora do conto’, realizada pela bibliotecária. É o meu sonho”, conta Marizete Goulart, diretora da Escola Estadual Demétrio Ribeiro, localizada no centro da cidade de Alegrete, RS.

De fato, uma biblioteca com espaço físico acolhedor, aberta a alunos de todos os períodos, com livros devidamente catalogados e, nela, a presença do bibliotecário regendo atividades para envolver crianças e jovens na leitura é o sonho de muitos diretores e professores de escolas públicas. A lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010, tinha o objetivo de tornar esse contexto realidade, ao determinar às redes de ensino – públicas e privadas – esforços progressivos no sentido da universalização das bibliotecas escolares, no prazo máximo de 10 anos, respeitando as normas que regem a profissão de bibliotecário. O prazo chegou ao fim e a universalização não aconteceu. A lei não foi devidamente regulamentada e sua implantação tem sido adiada.

Foto: shutterstock

A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4003/20, que ampliou o prazo para 2024 e alterou a definição de biblioteca escolar para abranger outros suportes além do livro impresso: livros digitais, materiais videográficos, áudios, fotos e documentos registrados em qualquer suporte destinados à consulta, pesquisa, estudo ou leitura. 

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Leia: Formar novos leitores para entenderem a si e ao mundo

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De volta a Alegrete, Marizete até tentou concretizar seu sonho: “formalizei o pedido de um profissional à Coordenadoria Regional de Ensino (CRE) e recebi a orientação de aproveitar os professores readapta­dos. O último docente com desvio de função e que trabalhava na biblioteca saiu em julho”, conta. Atualmente, o funcionamento da biblioteca conta com a boa vontade da secretária da escola, que consegue mantê-la aberta nos períodos da manhã e da tarde. Os alunos do ensino médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do período noturno são privados do espaço.

A bibliotecária à qual Marizete se refere na escola que ela tem como referência para o bom funcionamento da biblioteca é na verdade uma professora readaptada que recebeu formação específica em biblioteca escolar. Marizete acredita que essa é uma saída. Pelo menos é o que também funciona na Escola Estadual Municipalizada Dona Thereza Odette, em Ipu, cidade a 280 km de Fortaleza, CE, onde uma professora readaptada, por causa de problemas nas cordas vocais, comanda a biblioteca há mais de 10 anos. Conforme explicou o professor de matemática Antonio de Souza, a escola atende alunos do ensino médio e o que mais funciona ali é o empréstimo de livros. 

No centro da capital paulista, a biblioteca da Escola Estadual Fidelino de Figueiredo permanece aberta graças à professora Regina Mello. Ela lecionava história até 2018, atualmente está readaptada. O desejo de não ficar ‘encostada’ e o gosto pela literatura a levaram a aceitar a tarefa em 2019. “Quando eu era professora de história, sempre levava os alunos para fazerem algum trabalho na biblioteca, mas, à época, os diretores achavam que a biblioteca não era lugar para trânsito de alunos e ela permanecia trancada a maior parte do tempo”, conta. Livros não faltam. Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, Drácula, de Bram Stocker, literatura infantil e até livros de autores recentes abordando o racismo compõem a grande diversidade de gêneros literários à disposição.

“Quando eu peguei a biblioteca, descobri diversos livros em um armário trancado. Por exemplo, havia quatro exemplares da edição especial da ‘Mafalda’, de capa dura, e nele estava escrito ‘cuidado com este livro, que é caro’. Os alunos nunca tiveram acesso a ele. Descobri pérolas, um acervo muito grande, coisas que algumas bibliotecas não têm. Coloquei todos os livros para circular.” 
bibliotecas escolares
“Quando peguei a biblioteca, descobri diversos livros em um armário trancado. Os alunos nunca tiveram acesso a ele”, conta a professora Regina Mello
Foto: arquivo pessoal/Regina Mello

O espaço é pequeno, com quatro estantes, anexo a uma sala maior com projetor onde os alunos assistem a filmes. Essa configuração espacial não facilita a criação de um ambiente propício à leitura. A escola aguarda uma reforma. E ganhará um reforço: estagiários do curso de Biblioteconomia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) se propuseram a ensinar a catalogar e a limpar o espaço da biblioteca. 

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Acervo com pérolas literárias na EE Fidelino de Figueiredo, em SP
Foto: arquivo pessoal/Regina Mello

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Leia: Biblioteca escolar como parceira pedagógica do professor

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“O bibliotecário é essencial para que uma biblioteca escolar tenha vida”, sentencia Galeno Amorim, ex-presidente da Biblioteca Nacional e do Cerlalc/Unesco (Centro Regional de Fomento à Leitura na América Latina e no Caribe) e atual presidente da Fundação Observatório do Livro e da Leitura. Mais do que garantir uma boa organização e gestão do espaço, o bibliotecário é um mediador entre livros e leitores. Ele atua em parceria com professores e coordenadores pedagógicos, transformando o espaço da biblioteca numa extensão da sala de aula: “esse profissional apresenta livros, autores, coleções e se envolve com o comportamento leitor do aluno, indicando e ampliando possibilidades”. Essa tarefa é a que faz com que o leitor em formação ganhe autonomia.

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Galeno Amorim, presidente da Fundação Observatório do Livro e da Leitura: “o bibliotecário é essencial para dar vida à biblioteca escolar”
Foto: arquivo pessoal

Galeno acredita que, com raras exceções, por mais boa vontade que se tenha, é difícil um professor readaptado substituir um bibliotecário. Lauri Cericato, especialista em políticas públicas educacionais, concorda. Para Lauri, o nó está na falta de formação de bibliotecários escolares. “Precisamos regulamentar a lei e criar mais cursos de graduação ou técnico de curta duração para formar esses profissionais.” Ele enfatiza: “é preciso uma formação específica para atuar no ensino básico. Enquanto a política pública não der espaço para a formação de alguém que estimule o aluno, não vamos ganhar esse jogo”. 

Sobre a importância de um espaço próprio para a leitura, cabe lembrar: “É a biblioteca escolar que valoriza a prática da leitura literária no cotidiano da população escolar e propicia as condições para que os profes­sores utilizem, nos seus processos educativos, os livros e outros materiais da cultura escrita. O uso adequado da biblioteca escolar significa dar acesso aos pequenos e jovens leitores em processo de formação às diferentes práticas leitoras”, diz Galeno Amorim.

Mas não só: “é nesse ambiente da biblioteca escolar que se ensina e cultiva o uso coletivo dos bens públicos; parece pouco, mas é superimportante, é fundamental para ajudar a desenvolver na criança e no jovem as noções de solidariedade, cooperação, cidadania e as próprias habilidades socioemocionais”, completa. 

Uma biblioteca escolar em pleno funcionamento alcança a comunidade para além dos muros da escola. Regina, por exemplo, menciona um aluno que levou para casa um livro sobre alcoolismo. Ela questionou a escolha e o aluno respondeu: “é para minha mãe”. Galeno reforça esse aspecto: “a abundância da cultura letrada é importante, com livros que se espalham pela cozinha, sala, banheiro, em cima da cômoda, da televisão, do sofá, por toda parte. Isso faz com que os livros se tornem parte do DNA da família, e isso a Unesco diz que é uma possibilidade extraordinária”. 

Ele afirma que é importante a presença de um acervo físico com quantidade mínima de 5 mil exemplares. Por outro lado, a biblioteca digital pode, num prazo curto, oferecer 20, 30 mil exemplares para escolas distantes dos centros urbanos e que ainda não têm suas bibliotecas. Os novos suportes são bem-vindos: “a maior quantidade possível de suportes torna a biblioteca mais adequada. O livro digital, o audiobook, o braille, ainda muito importante, se complementam e são usados de acordo com as necessidades dos alunos”. 

Recursos financeiros para instalação e manutenção de bibliotecas escolares são advindos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), mas as ações nesse sentido dependem da vontade política dos gestores públicos. A regulamentação da lei e sua implantação, ao que tudo indica, dependerá de uma mobilização mais efetiva da sociedade civil.

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Autor

Sandra Seabra Moreira


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