Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 23/09/2022
Em tempos de metaverso, o rádio mantém sua importância, seja nos lares ucranianos ou na educação em escolas brasileiras
Finais apocalípticos chamam sempre mais a atenção do que conclusões complexas ou mesmo transformações de cenários e personagens. No caso de como enxergamos a trajetória das mídias, isso não é diferente.
O cinema, por exemplo, foi precocemente decretado como extinto com o advento da televisão, depois do videocassete, posteriormente do DVD e então com os serviços de streaming. Ao contrário, hoje vivemos um tempo de imensa necessidade de curadoria; nunca se produziu tanto audiovisual cinematográfico. Antes disso, a morte do serviço de informações e entretenimento via ondas sonoras, que chamamos de rádio, foi decretada inúmeras vezes desde que nasceu, há 100 anos. O fato é que o rádio continua vivo, atuante e exerce um papel fundamental também no desenvolvimento da educação e cidadania.
O rádio foi considerado o primeiro veículo de comunicação de massa (embora o jornal e até o cinema já se desenvolviam a passos largos na segunda década do século 20) porque driblava as limitações impostas pelos parcos índices de escolaridade da época. Para se ter uma ideia, o Brasil contava com 80% da população não alfabetizada. Além de uma produção pouco custosa, e o consequente barateamento dos aparelhos receptores, o país viveu 1930 como uma década de ouro, com radionovelas, orquestras e programas jornalísticos.
Leia: Todas as mídias combinadas em benefício da aprendizagem
Durante a Segunda Guerra, o rádio também teve um papel importante, num combate às fake news da época. A BBC (British Broadcasting Company), o serviço público e comunitário de transmissão britânico, contou com repórteres no front, improvisou estações subterrâneas em Londres em caso de bombardeio à cidade, e, por meio das ondas curtas (ao contrário do que parece, são as mais abrangentes), chegou a toda a Europa com jornalismo confiável.
Na mesma época, a educação começou a se aproximar do rádio; o médico e educador polonês Janusz Korczak (codinome de Henryk Goldszmit), justamente durante a segunda grande guerra, utilizou a mídia para promover a democracia e a livre expressão nos lares de órfãos que comandava. Adepto desde a infância de correntes que pregavam o pensamento livre, Korczak criou jornais internos e estações de rádio improvisadas para as crianças se expressarem. Como legado de seu trabalho, também utilizou o sistema de rádio para gravar palestras, algumas que misturavam a educação às questões de saúde. A crueldade nazista não permitiu que essa história terminasse bem, mas o legado do chamado “bom doutor” inspirou ações educativas e comunitárias até hoje.
Recentemente, a novidade do rádio mostrou não chegar ainda ao fim. Por volta de 2010, o relevante relatório anual de tendências da Deutsche Welle, o serviço de transmissão de interesse público da Alemanha, apontou para uma tendência pouco crível para a recente geração de jornalistas digitais, acostumados com blogs e redes sociais: um renascimento do rádio na forma de pequenos arquivos, cujo conteúdo tem foco específico, e que poderiam ser baixados por demanda do ouvinte. O podcast, esse papo íntimo ao pé dos fones de ouvido, surgia então como a mais nova tendência das ondas sonoras no jornalismo. O resultado é perceptível até hoje.
Por outro lado, embora a frequência AM tenha praticamente se extinguido na Europa, e perdido audiência nas Américas, a transmissão analógica de rádio ainda mostra força na contemporaneidade. Durante o recente conflito entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, a BBC voltou a mostrar-se relevante, ao “ressuscitar” seus sinais de ondas curtas para transmitir informações de qualidade, checadas, aos lares ucranianos. Ao mesmo tempo, em países com pouca infraestrutura digital, como banda larga, o rádio e a televisão mantêm papel central. Esse foi o caso do Brasil, cujas notícias a respeito da covid-19 chegaram a mais pessoas por esses meios, segundo pesquisa da Abert.
Leia: O universo, o verso e o metaverso
O poder de penetração do rádio mesmo frente às tecnologias digitais foi percebido pelo médico Eugênio Scannavino, ainda nos anos de 1980, quando resolveu combater a mortalidade infantil em comunidades ribeirinhas do rio Tapajós, PA. Seguindo a trilha deixada por Janusz Korczak, ele criou com seu irmão, o comunicador Caetano Scannavino, a Rádio Mocoronga. Trata-se de um sistema de som adaptado a um barco que percorre as comunidades transmitindo informações relevantes de saúde púbica – e que está ativo até hoje. Fruto dessa ação inicial, a organização Saúde e Alegria, comandada pelos irmãos, é reconhecida globalmente pelo trabalho que reúne comunicação, educação e saúde pública.
O recurso pedagógico do podcast ou das rádios escolares ganhou também novo fôlego com o barateamento dos recursos técnicos. O programa Educom Rádio, por exemplo, tornou-se política pública na cidade de São Paulo há 15 anos. Nele, estudantes da rede pública utilizam a linguagem para explorar a criatividade, narrativa, inventividade e até para combater as notícias falsas.
Engana-se quem pensa, portanto, que o fato de o rádio utilizar apenas o som o torne uma comunicação menos completa, ainda mais em tempos de metaverso. É justamente a imaginação provocada no ouvinte que faz da mídia uma das mais instigantes; desde a radionovela até os atuais podcasts.
Construir e lapidar uma história apenas com sons é um desafio pedagógico importante no desenvolvimento de narrativas, interpretação de fatos históricos e até na checagem de notícias falsas. Com todo esse potencial, o centenário rádio prova ter ainda muita lenha para queimar.