COLUNISTAS

Colunista

Raquel Alves

Filha do educador Rubem Alves, foi presidente do Instituto Rubem Alves. É escritora, palestrante e fundadora da Arquitetura do Sensível

Publicado em 24/06/2022

É preciso ter o dom de educar

O profissional precisa ter o dom de educar, pois a técnica e o saber podem ser ensinados, mas o dom já precisa estar no corpo

Há muitos anos, dirigindo meu caro, li um outdoor que anunciava cursos de graduação a partir de 290 reais/mês: contabilidade, administração, pedagogia. Naquela época meu pai, Rubem Alves, estava no auge e viajava o Brasil todo dando palestras. Pensei: “se o papai visse isso aqui acharia o fim da picada”.  Ele viu e, de fato, achou. Primeiro porque cursos de graduação deixavam de ser uma escolha de carreira, e começavam a se tornar, simplesmente, mais um item a ser concluído, e sendo assim, vale escolher pelo mais barato… 

Segundo, porque a pedagogia estava lá, o curso que prepara profissionais para atuarem com o saber e a experiência de vida de milhares de crianças… Será mesmo que uma carreira tão importante e transformadora pode ser escolhida assim, pelo preço ou quem sabe, pelo número de concorrentes por vaga? 

Para minha felicidade, não passei no vestibular assim que terminei o ensino médio (que na época ainda se chamava colegial). Chorei muito, disso eu me lembro bem. Mas naquela ocasião, eu com 17 anos, sabia pouco a meu respeito. Meu irmão mais velho já estava formado em medicina e o do meio em biologia. Claro que estava prestando curso para medicina e biologia! Onde estavam as minhas referências se ainda as não conhecia dentro de mim? Talvez, eu pudesse ter escolhido um dos cursos do outdoor, se o já tivesse lido… Quem sabe? 


Leia também

Sabedoria eterna de Rubem Alves, meu pai

Na época dos algoritmos, escola só faz sentido com vínculo e paixão, diz Muniz Sodré


Depois de um ano me dedicando a procurar cursos de graduação que combinassem comigo, me entendi com a arquitetura, que de fato foi um grande amor. Junto com ela prestei artes plásticas em várias universidades também. Acabei passando em todas as opções que estavam ligadas ao meu coração, mas para isso precisei fazer, além da prova tradicional do vestibular, as provas de aptidão.

Há certas áreas de atuação profissional que precisam, além do saber, o sabor. 

Para isso, o profissional além de ter a técnica, precisa ter o dom e é para isso que os testes de aptidão existem – para avaliar se o candidato tem o dom. A técnica e o saber podem ser ensinados. Mas o dom já precisa estar no corpo do candidato, como uma sementinha que espera a hora propícia para germinar.

Há uma área de suma importância, creio que entre todas as profissões seja a mais transformadora, que a meu ver também deveria ter testes de aptidão. E ela estava lá naquele outdoor, sendo oferecida pelo preço e não pela magnitude que representa: a pedagogia.  

Pedagogos podem ser os cientistas da educação, da alfabetização, da gestão escolar e assim por diante. Mas quando optam por ser os transformadores de vidas, educadores que serão lembrados por vidas inteiras, esses sim precisam de vocação.

Afinal, tem como ensinar um profissional de pedagogia a amar as crianças? Tem como mostrar a ele como incentivar um adolescente a alçar seus voos se ele próprio não se encorajar a fazer o mesmo consigo? Tem como ensinar o carisma? Tem como ensinar um professor a cativar a atenção e oferecer prazer enquanto ensina? Sabemos que para essas questões podemos apenas apontar direções, mas o indivíduo tem que caminhar e fazer suas descobertas por conta própria. 

Meu pai até a sua velhice se recordou de quando era adolescente e, decidido a atuar como pianista profissional, chegou a estudar oito horas de piano por dia. Nesta ocasião tocou a campainha da casa e ele atendeu. Eram uma mãe com um menininho de quatro anos de idade, que chegavam para uma visita. O rapazinho sem pedir licença, sentou-se ao piano e de primeira tocou a partitura dificílima que o aspirante a pianista estava pelejando tocar há dias. O menininho era Nelson Freire…Essa experiência ensinou uma coisa ao meu pai que ele carregou pelo resto de sua vida: por mais que amasse o piano, o dom lhe escapava pelos dedos.

Meu pai se tornou professor de piano, embora nunca tenha exercido a profissão. Tocava bem o suficiente e dominava a linguagem musical das partituras. Mas para ser pianista, isso não era suficiente.

Para ser um bom educador, não basta amar a educação. É preciso ter o dom de educar… Sejamos sinceros: quantos professores de fato fizeram diferença na nossa vida? Quantos carregamos na memória e no coração? Quantos, de fato, contribuíram efetivamente para que desenvolvêssemos uma relação mais profunda com a vida? Quantos nos ensinaram a voar?  E qual sentido teve passarmos por tantos professores se nos esquecemos tanto deles quanto do que nos “ensinaram”?

E já que estamos nos valendo da sinceridade, o que é educar? Como deve ser a figura de um educador? E como está sendo hoje em dia? Meu pai costumava comparar professores e educadores com eucaliptos e jequitibás: eucaliptos são produzidos em série, para o mercado. Jequitibás são de crescimento lento, mas fazem sobra e são acolhedores… só podemos amar e amarrar balanços para brincarmos embaixo de jequitibás. 

Não adianta plantarmos muitos eucaliptos, ensinarmos a leitura perfeita das partituras, se ignorarmos que educação é que nem verão: não se faz só com uma andorinha… A figura do professor não tem sentido se não for se relacionar com muitos alunos, e essa relação precisa de qualidade! 

“Você gosta de adolescentes?” Para essa pergunta a resposta é fácil: gosto sim! Ou… Não, prefiro as crianças pequenininhas… Que seja! Falar é fácil! Que tal colocar o candidato junto com 30 adolescentes para ver como se sai? Ou numa sala com 15 crianças de educação infantil? Se gritar, já perde ponto. O dom de uma pessoa se avalia na prática, e não sobre seu domínio sobre a teoria. É preciso um bocadinho de coragem para olhar sobre os processos de aptidão dos pedagogos e assim selecionar os que têm a educação nas veias… Da mesma forma como acontece com os arquitetos, os músicos, os artistas…  

Educar é uma arte, não é mesmo? Um educador é um artista que aponta para o mundo e diz: “olha como é bonito! Aproveite! Vem cá que vou te ensinar a voar”.

Sendo assim, se não basta ter a tela, as tintas e os pincéis para se pintar um belo quadro, se não basta ler com fluência as partituras para fazer amor com um violoncelo, não basta a faculdade de pedagogia para que o dom de educar apareça… É preciso procurar pelos jequitibás! E é no dom de educar que moram as sementes dessas árvores tão sábias e brincalhonas…

Escute nosso episódio de podcast:


Leia mais

Captura de tela 2024-11-19 161252

Papa Francisco e o pássaro Dodô

+ Mais Informações
WhatsApp Image 2024-11-14 at 14.12.27

Entendendo a ansiedade durante avaliações educacionais

+ Mais Informações
WhatsApp Image 2024-11-13 at 14.32.29

Proibição dos celulares na educação: solução incompleta para um...

+ Mais Informações
WhatsApp Image 2024-11-05 at 10.39.54

Banir o celular, sem negligenciar urgências

+ Mais Informações

Mapa do Site