Sou filha caçula do escritor e educador Rubem Alves, que nos deixou como parte do seu legado a sabedoria de que um educador não morre jamais. Não morre porque continua a viver naqueles que foram tocados pela magia das suas palavras, do seu olhar e da forma de compreender a vida que lhes foi apresentada.
Depois de adulta passei a pensar sobre o que fez meu pai ser um educador tão querido. Suas aulas eram abarrotadas de alunos e de curiosos não matriculados. Não era raro ter gente sentada no chão, por não haver espaço suficiente e o silêncio e a organização eram absolutos. Como ele conseguiu essa proeza? Acredito que a maioria dos educadores gostaria de ser assim.
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Uma amiga que foi aluna do meu pai me relatou que certa vez ele interrompeu a aula e convidou todos a irem para a janela assistir ao pôr do sol que estava bonito. Teve também outra situação em que ele fez todo mundo arrastar as cadeiras e sentar no chão em roda, falando sobre a vida…
Haviam duas alunas um tanto rebeldes, e bastou esse momento de fala e de escuta para que ele entendesse a razão do comportamento dissonante das moças…
De uma coisa tenho certeza: ele nunca se escondeu ou se protegeu atrás do seu título de docente PhD, se permitindo ser humano antes de qualquer outra coisa.
Raquel com seu pai Rubem Alves, falecido em julho de 2014 (foto: reprodução)
Se estou escrevendo aqui e minhas palavras chegam até vocês, é porque as escrevo com o pensamento e um bocadinho de conhecimento para se construir um bom texto. Mas se, esse texto tocar o coração de vocês de alguma forma, é porque minhas palavras estão saindo do meu coração. É uma questão de linguagem…
“Nenhum educador conquista um aluno com apostilas“
Conquistamos pessoas sendo humanos, sensíveis e sem medo dos sentimentos.
Meu pai costumava dizer em suas palestras que para ser um educador não deveria bastar entrar no curso de pedagogia. Educar é um dom, e para isso deveriam haver testes de aptidão.
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Sentir pode doer, e muito. Enquanto educadores, isso se potencializa. São várias pessoas convivendo em sala de aula diariamente e fazer de conta que emoções e sentimentos não ocupam o ambiente junto com brincadeiras, cadernos e notebooks é como fazer de conta que somos capazes de deixar todas nossas preocupações, angústias e vitórias fora de nós quando estamos trabalhando.
Meu pai não tinha medo de sentir, e sabia com destreza que pessoas com sentimentos bagunçados demais não conseguem prestar atenção em aula alguma. Às vezes basta uma palavra acolhedora ou um olhar manso.
“Com serenidade e um fio de cabelo arrastamos um elefante” diz um daqueles provérbios que lemos na internet. Sábio e verdadeiro. Só precisamos da serenidade e da consciência do fio de cabelo, atributos humanos que apostila nenhuma é capaz de traduzia.
Somos iguais enquanto cidadãos, mas somos totalmente diferentes uns dos outros. Cada um de nós carrega sua história, cultura, fisiologia, afetos e sonhos. Porque uns gostam de olhar para as estrelas e pensar sobre o mistério do espaço infinito e outros gostam de fazer esportes? Porque uns tem deficiências e outros não? Os porquês não são problema… A questão é que somos todos um conjunto chamado sociedade e como podemos tratar como iguais os seres humanos, que por sua essência e excelência, são uns diferentes dos outros? E como podemos nos reconhecer e nos amar nos entendendo como únicos?
Educador é aquela pessoa que olha para a vida e aponta o dedo dizendo: “olha que lindo! Vai lá, usufrua!”. Para isso é preciso carregar e compreender a beleza da essência humana.
Todas as coisas boas que a tecnologia e a medicina nos trouxeram começaram com um sentimento bom: o desejo de descobrir algo para melhorar a condição de vida humana. Cegos só usam celulares e computadores por conta da tecnologia com acessibilidade. Mas essa tecnologia nasceu do desejo de alguém que queria ajudar um cego. Assim nasceram as vacinas, os temperos da culinária, a internet, o cimento e as telhas, e assim por diante. Pessoas más constroem coisas ruins. As boas constroem coisas boas. Tudo começa na convivência e no desejo de conviver.
Escolas são nossa primeira e maior referência de convivência e todos os que nos educaram foram como espelhos, diante dos quais refletíamos o desejo de sermos parecidos ou não. Como dizia Jung, “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana”.
Essa é a grande graça de viver e de educar.
*Raquel Alves é filha do educador Rubem Alves, foi presidente do Instituto Rubem Alves. É escritora, palestrante e fundadora da Arquitetura do Sensível