NOTÍCIA
A afirmação da pensadora alemã é lembrada neste artigo do jornalista Rubem Barros, que descreve sua experiência como editor de educação
Publicado em 27/10/2021
A afirmação da pensadora alemã é lembrada neste artigo do jornalista Rubem Barros*, que descreve sua experiência como editor de educação
No segundo semestre de 2007, poucos meses após assumir a edição da revista Educação, fui convidado por Guilherme Canela, então coordenador de pesquisa de mídia e jornalismo da Associação Nacional pelos Direitos da Infância (Andi), para ministrar uma aula sobre políticas públicas e educação num curso de extensão oferecido pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Leia também
Edgar Morin e os saberes não curriculares
O que nos motiva a aprender a vida toda?
Sem o saber, Canela me ofereceu a oportunidade de dar um pouco mais de substância teórica ao exercício jornalístico diário que fazia na revista. Mesmo para quem tem uma boa familiaridade com um tema, a obrigação de organizar esses conhecimentos e fundamentá-los acaba sempre se mostrando uma ferramenta de grande utilidade para as atividades que exercemos um pouco por intuição, outro pouco pela absorção inercial daquilo que se pratica num determinado campo, o habitus a que se refere o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Ou seja, é comum adotarmos valores, critérios e práticas já dominantes e naturalizados em nossas áreas de atuação.
Mesmo estando tranquilo quanto a não reproduzir acriticamente essas práticas, em especial no que tange ao jornalismo de educação, a oportunidade de sistematizá-las para explicá-las a terceiros permite correções, aprofundamentos e contato com novas ideias. Naquele momento, para abordar escolhas sobre a cobertura educacional que realizava na revista, optei por não abrir muito o leque teórico e ancorar minha fala em uma autora que me parecia contribuir para a oferta de uma reflexão que não me fizesse incorrer em alguns problemas recorrentes que eu enxergava então na cobertura.
Mais conhecida por seus escritos abordando as aventuras totalitárias, suas origens e a inércia moral de sujeitos que não enxergavam o mal que cometiam, Hannah Arendt (1906-1975) foi uma pensadora cujo principal campo político de reflexão foi a filosofia política. Sobre educação propriamente dita, escreveu apenas um texto, A crise da educação, inserido na coletânea Entre o passado e o futuro (ed. Perspectiva).
Hannah Arendt trazia para a minha exposição – e para o exercício do jornalismo – uma reflexão que antecede qualquer outra quando pensamos em educação, seja ela pública ou privada (a revista sempre se preocupou em olhar para ambas): por que educamos e qual o sentido da educação? Aparentemente simples, são questões intimamente relacionadas a nossas visões de mundo e de sociedade. Respondê-las a contento implica ter clareza sobre que seres humanos queremos formar para que tipo de sociedade. Mais ainda: significa saber se achamos que todos devem ter direito de acesso ao mundo que vislumbramos (ainda que saibamos, conhecendo minimamente o ser humano, que direitos e desejos combinados conformam pessoas muito diferentes entre si).
Em seu pensamento, Hannah Arendt traz um dilema vindo da idade moderna e hoje aparentemente mais forte do que em sua época. O de que o grande sentido da educação era a transmissão intergeracional da herança da cultura humana, o conhecimento que construímos ao longo dos séculos.
Já em seu tempo, isso começa a ser questionado e negado, como resultado da aceleração do mundo e da desvalorização da experiência. Hoje, quando os jovens se sentem muito mais capazes que as gerações anteriores para lidar com as tecnologias, esses valores estão ainda mais na berlinda.
Mas a cobertura de educação e mesmo o jornalismo que se faz sobre a política e a sociedade exigem que questionemos ainda mais a técnica, ao invés de mitificá-la e apregoá-la como ápice do conhecimento. Afinal, a mais sofisticada inteligência artificial não prescindiu de bases do conhecimento que se fizeram ao longo de uma lenta evolução do nosso domínio matemático.
Leia também
O que muda com a Base Nacional de Formação dos Professores
Da mesma maneira, é preciso olhar para a excessiva ênfase que tem sido dada à tecnologia e aos processos individualizados de aquisição da aprendizagem, valorizando-a mais do que o processo educacional como um todo, algo que exige convívio, maturação, troca, escuta atenta e diálogo permanente com o mundo adulto.
Afinal, educar jovens e crianças, como dizia Hannah Arendt, significa abrir as portas do mundo social e do universo adulto para eles, sem que possamos nos eximir dessa responsabilidade por uma enganosa reificação de um protagonismo que nada mais é do que a construção assistida da autonomia. A mesma autonomia que Immanuel Kant (1724-1804) defendia como pilar do exercício da liberdade com dimensão moral. O mesmo Kant para quem a grande função da escola era ensinar o estudante a pensar, aí compreendidas as capacidades de analisar e julgar antes de agir.
Ao retroceder no tempo para conhecer olhares diversos sobre o ato de educar conseguimos reconhecer nas propostas contemporâneas muitas das ideias hoje recicladas, muitas vezes após o obscurecimento de antigos conceitos fundantes da educação, que visa formar o sujeito.
Assim é que vemos grande parte das chamadas habilidades socioemocionais representarem nova nomenclatura para as seculares virtudes aristotélicas. Todas elas há muito tempo partem do processo de educar, que em muito transcende o de aprender.
Para citar um autor que fez história nestas páginas, o filósofo José Sérgio Carvalho diz que a aprendizagem indica a absorção de algo novo: “uma informação, um conceito, uma capacidade”. Já formar – e realizar o processo educacional – implica a transformação desse sujeito em um “novo alguém”. “Uma aprendizagem só é formativa na medida em que opera transformações na constituição daquele que aprende.”
*Rubem Barros, jornalista e escritor, foi editor e diretor editorial desta publicação
A quem interessa a morte da escola?