Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 19/10/2021
A motivação para o “lifelong learning” é tema de diversas linhas de estudo, em comum a certeza de que precisa ser voluntário, contínuo e automotivado
Em 1992, o compositor popular norte-americano Bruce Springsteen tornou célebre a canção 57 channels (and nothin’ on), algo como 57 canais (e nada para ver) – ironizando a qualidade da programação dos canais a cabo frente a uma “curiosa e interessada” audiência. Parecia um prenúncio dos tempos de muita oferta, mas pouca qualidade em que vivemos.
Dentro do que chamamos de “lifelong learning” (ou aprendizado durante a vida toda), a efervescência de informações no mundo não é capaz de despertar, por si só, a motivação para continuar aprendendo depois dos ciclos compulsórios de educação.
Pelo contrário, a confusão de signos e significados nos diferentes universos informacionais pelos quais circulamos tende mais a afastar do que aproximar aqueles que já não se sentem facilmente estimulados a ler, assistir, criar ou participar de alguma atividade ou exercício. Nem todo mundo se sente motivado ou apto para abraçar o aprendizado permanente.
Leia: Cultura da aprendizagem
Analisando o conjunto de conceitos que determinam o que é o “aprender a vida toda”, é unânime a definição de que esse movimento deve ser voluntário, contínuo e automotivado. É o que chamei em outras colunas de uma “cultura de aprendizagem” que envolve não só a escola, mas uma miríade de atores sociais em diferentes papéis.
Como contraexemplo, certa vez um economista, doutorado em uma das melhores universidades americanas, admitiu em entrevista que no auge de seus 70 anos gostava de pesquisar na internet onde se encontravam os elementos químicos da tabela periódica na natureza, além de escutar aulas de filosofia de universidades estrangeiras em formato de podcast. Por que ele continuava motivado a aprender mesmo depois de uma vida toda de trabalho e estudo? Tomemos o cuidado de não deduzir dois caminhos óbvios, mas enganosos: uma curiosidade “inata” ou então um privilégio “elitista”. A questão é complexa.
O que é chamado de teoria da “autodeterminação” (somada a elementos de contexto social) parece a abordagem mais completa para compreender o fenômeno da motivação para a aprendizagem; ela desconstrói, sobretudo, a motivação em três aspectos: a não-ação (ou “amotivação”), os fatores intrínsecos e os fatores externos de motivação. Observando os dois extremos: a não-ação é provocada por uma percepção do sujeito de falta de competências, autoestima ou falta de recompensa para se aprender algo. Por outro lado, a plena motivação é guiada pela curiosidade, prazer, alegria e engajamento baseado no que resultará o aprendizado e seus benefícios.
Segundo a “autodeterminação”, há fatores externos e internos que estimulam nosso aprendizado; o conceito ainda etéreo da “curiosidade” faz parte desse processo. A saber, uma motivação interna, que se assemelha a uma “fome a ser saciada”, foi colocada por pesquisadores primordiais (como Joseph Sigmund Koch, em 1956) como um fator importante para continuar interessado por determinados aprendizados. Por outro lado, estudos do início deste século, que compararam “aprendizes” de diversos países, notaram que esse desejo de aprendizado tende a diminuir no decorrer do ciclo de vida. Seria como se curiosidade, considerada aqui um termo generalista, fosse sufocada pelo tempo e as mazelas cotidianas.
Leia: Estórias do tempo da velha escola (coluna José Pacheco)
Um outro estudo de 1999, que analisou 128 casos, mostrou que fatores externos como a obtenção de notas em provas, titulações ou outras necessidades formais da vida adolescente e adulta se apresentavam como elementos prejudiciais à motivação para a aprendizagem. Sendo assim, isso nos leva a uma questão clara, e já muito explorada nos debates, de uma educação que faça sentido para os estudantes: por que perdemos a curiosidade a partir da educação infantil? E mais: qual o papel das provas, exames vestibulares e outras características duras do currículo que dilaceram nossa curiosidade?
Os currículos e práticas escolares têm se mexido no mundo nos últimos 20 anos. As redes públicas dos Estados Unidos, por exemplo, com objetivo de desenvolver aprendizes ativos para toda a vida, têm revisto o papel da escola e aberto espaço para a criação de trilhas e ambientes de aprendizagem que os estimulem. Isso significa redimensionar a pressão das “notas” de exames diante de uma avaliação significativa dos estudantes, e redesenhar o próprio espaço físico.
A biblioteca tem um papel fundamental nesse projeto: tornar-se acolhedora e fazer de seus profissionais, os bibliotecários, parceiros e guias da curiosidade dos estudantes. Em outra frente, o aprendizado baseado em problemas, projetos ou perguntas (PBL) vem se tornando peça-chave para quebrar a rigidez do currículo compartimentado e estimular a curiosidade e o aprendizado para além da escola.
No Brasil, há elementos suficientes na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e na proposta do novo ensino médio que, se sustentados na ponta por professores e gestores preparados para implementá-los, tendem a tornar a aprendizagem menos burocrática. No fim, o que todos os estudos parecem indicar é que encontrar maneiras de fazer sobreviver a curiosidade infantil durante os ciclos de educação formal é o caminho para que continuemos a aprender a vida toda, para além dos muros das escolas e faculdades.
O desejo pela aprendizagem parece mesmo estar ligado com a descoberta que envolve o brincar – mesmo que na vida adulta.
Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance