NOTÍCIA
Movimento começou com duas escolas de SP e já inspira outras. Nesse processo, Colégio Micael virou parceiro de um banco alternativo que investe em causas sustentáveis e oferece crédito com juros baixos
O que é uma escola ideal e como fazê-la funcionar? Tais perguntas foram fundamentais para auxiliar o Colégio Waldorf Micael de São Paulo a abraçar uma proposta semeada há cerca de 10 anos e que só em 2021 vingou: eliminar a mensalidade e deixar os pais e responsáveis dizerem quanto podem pagar pela educação de seus filhos, adotando então um modelo de corresponsabilidade financeira, que se aproxima do conceito de economia fraterna. A mensalidade sai de cena e entra a contribuição. Com isso, hoje os valores são diversos. Há uma família, por exemplo, que contribui mensalmente com 400 reais e outra com 6.600 reais. E não é preciso comprovar renda, como apresentar holerite salarial. Pratica-se o princípio da confiança.
Leia: Conheça os princípios da pedagogia Waldorf na infância
Fundado há 43 anos por um grupo de famílias e educadores, o Micael está localizado na capital paulista, em 11 mil metros quadrados com bastante área verde do bairro periférico Jardim Boa Vista. Até 2020, a mensalidade girava em torno de 2.900 reais, sendo que 20% de toda a receita era destinada a bolsas de estudo.
Da educação infantil ao ensino médio, possui 60 professores e auxiliares e mais 30 colaboradores das demais áreas, o que inclui portaria, limpeza e administrativo. São 450 alunos, somando diurno e noturno, sendo que os da noite estudam sem custo algum há oito anos, quando foi criado um projeto filantrópico. O sonho do Micael é mesclar as salas dos dois turnos.
A necessidade de se transformar ganhou força ano passado, no início da pandemia, entre abril e maio, quando as famílias começaram a perder renda e a evasão a aumentar. No meio desse turbilhão de problemas, o colégio recebeu uma boa quantia financeira oriunda de uma briga judicial antiga por conta de isenções de impostos e resolveu destinar o dinheiro em forma de empréstimo sem juros para a permanência das famílias com dificuldade de renda, além de aumentar os descontos das bolsas. Mas isso não era suficiente e a sustentabilidade econômica da escola passou a ser pauta de reuniões online entre pais, professores e área administrativa.
Maurício Santos, coordenador da comissão de pais — seus três filhos estudam no Micael — conversou por telefone com Jefferson Reis, que também buscava saídas para transformar financeiramente a Escola Waldorf Guayí, localizada a cerca de 20 km do Micael, no Embu das Artes. Reis contou seu projeto de economia fraterna e Santos gostou.
O receio de ambas as escolas é não só a quebra financeira, mas a saída de famílias que desejam que seus filhos continuem matriculados, mas cujo bolso já não permite, sem contar a perda da diversidade social e racial que tende a gerar uma bolha com alunos apenas de elite.
Maurício Santos levou a ideia da Guayí para o Micael adaptar de acordo com a sua realidade. A comunidade escolar lembrou que por volta de 2010 implantou esse modelo só que um ano depois voltou atrás. “Faltou sustentação, explicar melhor como era a ideia, até porque para uma pessoa ser fraterna não é algo do dia para o outro, é uma conscientização, leva tempo. Temos a cultura de sempre querer levar vantagem e alguém tende a se perguntar: por que eu vou pagar mais e o outro menos? Hoje nós tentamos quebrar isso para as famílias contribuírem com o que elas podem e mostrar que se alguma pode contribuir mais ela estará ajudando outra pessoa a estudar no colégio”, explica Roberto Veiga, gestor no Micael há 22 anos, que completa: “queremos acreditar nas pessoas e que elas atuem pela verdade”.
Após três pesquisas online para saber a intenção das pessoas, mais de 80 famílias afirmaram que contribuiriam exatamente com o valor da mensalidade do ano passado e algumas puderam contribuir com mais. Nenhuma contribuição das famílias que faziam parte da escola foi negada; já com os alunos novos houve restrições, uma vez que nem todo valor oferecido batia com o orçamento da escola. A surpresa é que foi arrecadado mais que o previsto para este ano.
“Tínhamos um déficit grande. É unânime que se a gente tivesse permanecido apenas com bolsas e financiamento educacional (o modelo tradicional), estaríamos muito piores, teríamos perdas e famílias não estariam conosco. A gente diminuiu em 70% o nosso déficit”, afirma Maurício Santos.
Hoje, cada matrícula é um contrato individual. Tem cláusula pela qual a pessoa está ciente de que existem valores diferentes de mensalidade para a mesma classe e assim se evitam problemas jurídicos. “O trabalho do administrativo aumenta, mas vale a pena”, conta o gestor Roberto Veiga.
Indagado se acha possível esse modelo fraterno ser adotado por escolas tradicionais e com fins lucrativos, o gestor é direto: “acredito que sim desde que o dono não seja ganancioso. Ele também teria que ter o espírito fraterno, saber quanto precisa ganhar e ser transparente. Claro que a pessoa tem que ganhar algo, é justo. Mas a ideia capitalista de querer cada vez mais não vai dar certo”.
Leia: Um dos criadores do Pisa analisa o investimento público em educação no Brasil
Maurício Santos é diretor financeiro de uma multinacional e, mesmo com o seu dia a dia atribulado, sempre encontra brechas para continuar apoiando a escola. Nesse período de transformação, fez um curso online do espanhol Joan Melé, promotor de bancos sociais na Europa e América Latina, que lhe trouxe outro despertar abraçado pela comunidade escolar de tal forma que o Micael virou parceiro, no final do ano passado, de uma cooperativa de crédito, a EcoFrater (de economia fraterna), um guarda-chuva do Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil, Sicoob, o maior sistema de cooperativismo financeiro do país. O intuito é que mais escolas Waldorf se agreguem.
“Estamos trocando os bancos tradicionais por uma cooperativa de crédito. A ideia é que toda essa movimentação que os bancos fazem de ficarem com o dinheiro do cliente seja revertida a iniciativas antroposóficas ou sustentáveis e ainda ter acesso a crédito com juros baixos porque não tem fins lucrativos”, explica Santos.
Era meados de agosto de 2020 quando Jefferson Reis quase desistiu de implantar a economia fraterna na Escola Waldorf Guayí, localizada no Embu, na qual tem duas filhas pequenas matriculadas, e ano passado foi eleito presidente da Associação Mantenedora da Escola Guayí. A conversa com Maurício Santos, do Micael, foi o impulso que ele precisava (e que o Micael também precisava) para voltar a acreditar no projeto.
Jefferson Reis, que é formado em engenharia e trabalha com consultoria de logística também para uma multinacional, não esquece de uma mãe que queria matricular a filha, mas que afirmava ser pobre e não ter condições de pagar. “Aí eu me pergunto: como a gente vai restringir acesso, sendo que a pedagogia Waldorf busca formar seres humanos livres?”
Nascida há 11 anos, a Guayí só oferece o ensino fundamental completo. Até 2020, a mensalidade girava em torno de 1.970 reais e oferecia bolsas.
O planejamento para a implantação da economia fraterna começou em setembro do ano passado. Em 28 de outubro foi aprovado, em tempo recorde, o orçamento de 2021 e dois dias depois estava aberto o processo de rematrícula. Nesse período, o Brasil já tinha perdido quase 160 mil pessoas para a covid-19, muitas famílias estavam enxugando o gasto, inclusive com a mensalidade. A Guayí não divulga os valores médios com que hoje cada família contribui, mas são diversos. A escola também não recebe nenhum comprovante da renda familiar.
A previsão para 2021 era uma considerável evasão de crianças e perda da arrecadação financeira. O resultado? Aumento da receita mensal em 18%. A pequena Guayí tinha ano passado 70 alunos e hoje possui 87. Houve a entrada de 37 novos estudantes, o maior ingresso da história; agora há até fila de espera. Vinte alunos deixaram de estudar este ano, sendo que 12 porque concluíram o 8º ano, nenhum por questão financeira e a maioria por logística.
Entre as famílias, 86% aumentaram o valor ou o mantiveram (em relação ao que pagavam até o ano passado com a mensalidade tradicional) e apenas 14% reduziram. “Esses 14% são famílias que tiveram seu trabalho impactado com a pandemia. O projeto possibilitou que as pessoas pedissem ajuda e não virassem inadimplentes ou saíssem e quem pode ajudar pagando mais está fazendo isso”, diz Jefferson Reis. “Ano passado a inadimplência foi de 4,5%. Com esse projeto a tendência para este ano é baixar, porque a família diz quanto pode pagar, a não ser que ela tenha uma surpresa”, acrescenta.
“E aqueles que podem pagar mais só que tentam pagar menos? Não existe espertinho quando a gente fala de fraternidade. A consciência dessa pessoa ainda não foi ampliada. Não adianta querer julgar. Ela pode dar 500 reais sendo que poderiam ser 1.000 reais, só que ela ainda não está pronta e mesmo assim escolheu a nossa escola”, acredita Jefferson Reis.
Assista: Entrevista com José Pacheco: por um outro olhar na educação
As escolas Waldorf são sem fins lucrativos, não há um dono. Outro ponto que merece atenção é que a pedagogia criada por Rudolf Steiner há 102 anos tem como missão desenvolver seres humanos livres, para isso sua prática educativa é baseada em três eixos: físico, anímico e espiritual. Além disso, a economia fraterna que o Micael e a Guayí estão construindo dialoga com a trimembração do organismo social, outro eixo deixado por Steiner, mas que diante de um sistema capitalista tende a ser difícil de aplicar.
Segundo a Federação das Escolas Waldorf, a trimembração tem influência do lema da Revolução Francesa, uma vez que “concebe a liberdade como o princípio básico que deve reger a vida cultural-espiritual; a igualdade como alicerce fundamental da questão jurídico-legal e a fraternidade como sustento imprescindível para a atividade econômica”.
Tião Rocha: da morte cívica à UTI educacional