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Colunista

João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Machado de Assis responde a Felipe Neto e ao nosso tempo pandêmico

João Jonas Veiga é especialista nesse grande escritor, tanto que construiu uma suposta entrevista com Machado sobre os tempos atuais

machado-assis Machado de Assis nasceu em 1839 (foto: reprodução)

Os críticos literários são unânimes em apontar como erro a atribuição das falas das personagens ficcionais a Machado de Assis — como se elas estivessem discursando por ele ou como se ele emprestasse a voz a elas. Não que algumas falas esparsas não possam fazê-lo, mas é temerário tomá-las como representação de seus pensamentos e valores.

Do mesmo modo, Machado de Assis sabia que a vida e o mundo são tessituras ambíguas e cheias de relevos em que se costuram falsas e meias verdades; algumas falas, talvez, possam soar como verdades ou mentiras inteiras, mas sempre desfiadas.


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Nesse tecido complexo e esgarçado, Machado de Assis borda a dúvida, já a dedução e a  inferência ficam a cargo do leitor atento aos jogos especulativos que envolvem personagens e os narradores. Sendo assim, o autor espertamente passa ao largo disso, com seu silêncio, com seu sorriso recuado e com sua piscadela oblíqua, assiste de camarote o jogo especular e de especulação. Mesmo nas crônicas não ficcionais, não podemos dizer que a “voz de Machado” esteja presente de forma clara e unívoca, mesmo nelas também se alinham o tecido e a tessitura ambíguas.

Na crônica O punhal de Martinha, ele sugere: “Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis à realidade; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imagináveis. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas”.

A metáfora de Machado de Assis, provocadora, sugere que a realidade seja um “pássaro sem asas”, uma vez que ela, a realidade, fica camuflada pelo discurso, porque é ele quem determina o que e real e o que não é. E, talvez, o Bruxo vá mais além, sugerindo  que todo objeto social, entre eles, a linguagem, os acordos sociais, as convenções, a política e arte vão se juntando ao tempo e as coisas, tornando-se tradição e depois também verdade, independentemente da veracidade ou não do que foi consolidado. Por isso, propõe que a verdade e a mentira andam por aí aladas ou quiçá engaioladas. Difícil, fora do discurso, saber onde fazem ninhos.

Pegando carona indevida no voo desse pássaro sem asas, vou sugerir um jogo ficcional e relativista. Bruxo — que deu voz a personagens que talvez o representasse em algum momento e também a muitas outras a quem ele provavelmente repudiaria a intenção, as falas e os gestos — será vítima da minha ardilosa entrevista em que atribuirei a ele uma resposta à provocação do youtuber.

Entrevista com Machado de Assis:

Agora que senhor é um autor-defunto, posso considerá-lo também um defunto-entrevistado.  Como o senhor vê a morte e o mundo depois dela?

Os mortos ficam bem onde caem. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca pra rir, também não deixa os olhos para chorar.

O senhor acompanhou a polêmica levantada por um influenciador digital a respeito das leituras obrigatórias nas escolas do século 21? Segundo ele, os livros do senhor e os de Álvares de Azevedo são chatos e enfadonhos para os jovens do nosso tempo. O que tem a dizer sobre isso?

A diplomacia me ensinou a aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para os seus propósitos

Parece-me que a polêmica o incomodou, não?

A discórdia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem estéril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá…

O senhor crê que seja uma polêmica para render visibilidade ao influenciador que naturalmente vive e se alimenta dela?

O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar, escondida.

Em seu tempo, o senhor sempre foi visto como um escritor cético. Concordava com essa opinião da crítica especializada?

Eu, apesar do pessimismo que me atribuem, e talvez seja verdadeiro, faço às vezes mais justiça à Natureza do que ela a nós. Não posso negar que ela respeita alguns dos melhores, e estou que os fere por descuido, mas logo se emenda e põe bálsamo na ferida. Não achareis linha cética nessas minhas conversações dominicais. Se destes com alguma que se possa dizer pessimista, adverte que nada há mais oposto ao ceticismo. Achar que uma coisa é ruim não é duvidar dela, mas afirmá-la.

O senhor se incomodava com os elogios?  Sentia-se orgulhoso?

Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares e que sou brindado.


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Não fica incomodado de lhe crerem vaidoso?

A vaidade, segundo minha opinião, não é mais que a irradiação da consciência; a contração da consciência chamo eu modéstia. Eu sou a vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade a maior das virtudes.

O senhor não se incomoda mesmo com as opiniões alheias ou com as dos críticos ou com as dos leitores?

Não me retruques o leitor com o fato de ter de um lado a opinião do autor da ideia, e as gerações que a têm repetido e acreditado, enquanto do outro estou apenas eu. Faça de conta que sou aquele menino que, quando toda a gente admirava o manto invisível do rei, quebrou o encanto geral, exclamando: — El-rei vai nu!  Não se dirá que, ao menos, nesse caso, toda a gente tinha mais espírito que Voltaire. Está-me parecendo que fiz agora um elogio a mim mesmo. Tanto melhor; é minha doutrina.

Deixa-me abalar um pouco esse seu orgulho? Alguns críticos sugerem que nos romances longos, o senhor não era um grande contador de histórias, que em seus textos há mais reflexão do que retrato da paisagem brasileira e até da realidade. O que pensa sobre isso?

“Se a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais quais eles se dão na vida, a arte era uma coisa inútil; a memória substituiria a imaginação.” “Que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos no tempo e no espaço.”

Mas a opinião do senhor como pessoa se revela mais na crônica ou em seus contos e romances?

“Santa curiosidade! Tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia!”  “A realidade é a casa que está entre a minha e a sua opinião.”

Então, devo concordar que a verdade está entre a minha opinião como leitor e a do senhor como autor?

No fim de uma coisa que acaba, há outra que começa (…) Ao cabo, só há verdades velhas.

O senhor foi muito influenciado por Shakespeare, não? O que poderia falar dele?

Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare, quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Não se comenta Shakespeare, admira-se.


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Mas há muito dele em sua obra, não é verdade?

Eu, se tivesse de dar Hamlet em língua puramente carioca, traduziria a célebre resposta do príncipe da Dinamarca: Words, words, words, por esta: boatos, boatos, boatos. Com efeito, não há outra melhor diga o sentido do grande melancólico. Palavras, boatos, poeira, nada cousa nenhuma.

Se o senhor vivesse em nossa época, século 21, ficaria assustado com a boataria e com as crenças das pessoas nas redes sociais. Ficaria também alarmado com a boataria das notícias falsas.

Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis. O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode-se crer que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido foi o texto primitivo do conto.

Mas agora é um exagero. As pessoas acreditam em qualquer coisa que se ajustem as opiniões delas ou que reforcem os preconceitos. Algumas não investigam, por exemplo, a veracidade das coisas. Simplesmente acreditam e disseminam.  Que o senhor tem a dizer sobre isso?

É que o boato é uma das mais cômodas invenções humanas, porque encerra todas as vantagens da maledicência, sem os inconvenientes da responsabilidade.

Mas no seu tempo havia esses boateiros espalhadores de mentiras e de calúnias?

O boato é um ente invisível e implacável, que fala como um homem, está em toda parte e em nenhuma, que ninguém vê de onde surge, nem onde se esconde. Não é novo nada disso, nem eu estou aqui para dizer coisa novas, mas velhas, coisas que pareçam ao leitor descuidado que é ele mesmo que está inventando.

Estamos vivendo um momento difícil no século 21. Uma pandemia parou o mundo e vem matando muita gente em escala estratosférica. Aqui, no Brasil, as coisas andam um pouco fora do controle do governo e das pessoas. Andam receitando e acreditando em remédios milagrosos. E para piorar, há quem não se importe em contaminar o próximo. Estamos em um caos generalizado.  O que senhor tem a dizer ao nosso século?

A contradição é deste mundo. Quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito anterior e superior a todas as leis. Assim se perde a liberdade. Tudo se pode esperar da indústria humana, a braços com o eterno aborrecimento A monotonia da saúde pode inspirar a busca de uma ou outra macacoa leve. O homem receitará tonturas ao homem. Haverá fábricas de resfriados. Vender-se-ão calos artificiais, quase tão dolorosos como os verdadeiros. Alguns dirão mais.

Isto de política pode ser comparado à paixão de Nosso senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Tudo é bacilo no mundo, que está dentro do homem, no homem e fora do homem. A Terra é um enorme bacilo, como os planetas e as estrelas. Comecemos por pacificar-nos. Paz na Terra aos homens de boa vontade – é a prece cristã; mas nem sempre o céu a escuta, e, apesar da boa vontade, a paz não alcança os homens e as paixões os dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais que o céu. Das coisas humanas (…) a única que tem seu fim em si mesma é a arte.

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