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Januária Cristina Alves

É jornalista, educomunicadora, ganhou duas vezes o Jabuti e é membro da UNESCO MIL Alliance.

Publicado em 24/11/2020

Votar em tempos de pós-verdade

As fake news são cada vez mais um risco para a sociedade, uma vez que transforma a internet em um labirinto que impossibilita a reflexão

eleicoes-pos-verdade Eleições 2020, primeiro turno em Belém, Pará (foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A poucos dias do segundo turno das eleições para prefeito em diversas capitais brasileiras, em que os institutos de checagem de notícias falsas celebram uma diminuição da circulação de notícias falsas durante o período eleitoral, há quem diga que checar mentiras não basta para garantir a presença da verdade.

Combater a desinformação é um longo e tortuoso caminho, que nem sempre é de fácil acesso no labirinto da internet. Como disse o escritor inglês Mark Twain – ou pelo menos a frase é atribuída a ele: “Uma mentira pode dar a volta ao mundo, enquanto a verdade ainda calça seus sapatos.” Ou seja, a mentira — ou a meia verdade, ou ainda apenas um lado da versão e por aí vai — está sempre alguns passos à frente da verdade e é esse o ‘x’ da questão.


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Sabemos o quanto a problemática da verdade é relativa, foram tantos os filósofos que se dedicaram a discutir essa questão que tudo o que nos resta é nos concentrarmos nos fatos, ainda que, como disse o escritor inglês George Orwell em seu clássico 1984: “Se os fatos atestarem algo diferente, então é preciso alterar os fatos.” Colocado assim, nessa perspectiva, buscar a verdade parece uma luta inglória, que não resultará em vencedores.

O efeito é devastador

Em tempos de polarização é fundamental que tenhamos claro algo que é inquestionável: os fatos servem a quem os contam. Ou seja, tudo bem que “fatos são fatos” como dizem os apuradores de notícias, mas o recorte se fará deles, a escolha da forma como a narrativa será estruturada poderá produzir uma história descontextualizada, uma narrativa “falsa”, fictícia, se formos, novamente, nos colocar como aqueles que apuram os fatos.

Tornar uma história incoerente, descontextualizada, produz desinformação. E o efeito dela, como estamos assistindo com mais evidências neste novembro pandêmico e eleitoreiro, é devastador.

O exercício de escolhermos os nossos governantes é um teste e tanto nessa era da pós-verdade. Vimos a eleição nos Estados Unidos acontecer sob uma saraivada de “fake news” — a palavra predileta do presidente atual Donald Trump — por meio das quais ele tentou desesperadamente distorcer os fatos e transformá-los numa miragem, que mesmo absurda, ainda conseguiu convencer muitos dos seus apoiadores. A cada dia atestamos que as fake news tornaram-se uma fonte de entretenimento das mais atraentes.

Os fatos tornaram- se “chatos e desinteressantes” e o mudo mágico criado pelas teorias conspiratórias, embaladas pelos recursos tecnológicos disponíveis no universo digital, têm um apelo inquestionável.

Verdades estereotipadas

Tornamo-nos leitores desatentos, distraídos pelas traquitanas escondidas nas histórias inventadas, disfarçadas de realidade, e passamos a consumir o que as redes nos trazem, devidamente embrulhadas nas opiniões e visões de mundo que traduzem apenas uma parte do todo. A miríade de opiniões e achismos tornou-se a nossa maior referência para compreendermos o mundo multifacetado em vivemos.

Achamos que escolhemos os fatos quando nem sequer podemos optar pela ficção, dado que não sabemos discriminar o que é uma coisa ou outra. E aí fica mesmo difícil votar de maneira crítica e consciente.

“Diante do volume avassalador de informações cujas fontes e veracidade são difíceis de ser verificadas, a internet tende a levar os cidadãos comuns a perder a capacidade de entender e avaliar a realidade política. A multiplicação de analistas simbólicos e pensadores midiáticos, os chamados fast thinkers, acabam levando esses cidadãos não a pensar e refletir, mas a ver o mundo com base em estereótipos”, afirmam os autores do livro A liberdade de expressão e as novas mídias, da Coleção Debates, ed. Perspectiva.


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Exercer o nosso poder político por meio do voto tornou-se um desafio hercúleo. Segundo o Instituto DataSenado, com base nas eleições de 2018, 45% das pessoas que foram ouvidas afirmaram que, ao decidir o voto no período eleitoral, levaram em consideração informações vistas em alguma rede social. Não é pouca coisa.

Economia dos likes

Segundo Alberto Freitas Filho, no livro Nós: Tecnoconsequências sobre o humano (ed. Fi), organizado por Pollyana Ferrari: “O ‘poder do povo’ é exercido não por meio de votos, mas por meio de curtidas, comentários e compartilhamentos nas redes sociais. Surge, então, a economia dos likes, em que o valor de uma pessoa se mede pelos números de curtidas nos conteúdos por ela publicados no Instagram. Há quem dê a esse fenômeno o nome de ‘marketing de influência’. Por sinal, vivemos em um mundo em que todos se preocupam em ser influenciadores, sem perceberem o quanto estão sendo influenciados.”

A realidade política nos tem sido mostrada por meio de representações e nós nem nos perguntamos se elas correspondem ou não ao que nossos olhos veem e ao que nossa inteligência verifica.

A escolha política passa diretamente pela questão da representação. “Fulano me representa (ou não)”, dizemos, ao escolhermos nossos políticos. É difícil crer que isso seja algo concreto nos tempos atuais. Se ainda escolhemos nossos políticos baseados nas redes sociais, na opinião dos influencers, ou mesmo de comentaristas políticos que selecionam, “cuidadosamente”, a cena que desejam enfocar, certamente cometeremos erros ao declaramos quem são nossos representantes.

Utopia necessária

Há até quem tenha sido eleito sob o slogan de que só “a verdade liberta”, no entanto, é bom lembrar que só conhece a verdade quem faz o exercício cotidiano de aprimorar os sentidos para experienciá-la, como afirma Locke, o filósofo inglês, para quem a verdade é uma experiência que pode ser capturada, ou não.

Por isso, o exercício e o aprendizado democrático oferecido pelo voto é fundamental para vivenciarmos a busca pela verdade. Mesmo que nunca a conheçamos. O importante é seguir buscando.

Até as próximas eleições!

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular e autora do Abecedário de personagens do Folclore Brasileiro (Edições SESC/FTD Educação). Também realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens sobre educação literária, alfabetização midiática e storytelling (www.entrepalavras.com.br).

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