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João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 04/09/2020

Não é bolinho

Comparar não é tarefa fácil por conta das peculiaridades dos seres e das coisas

As coisas do mundo chegam a nós capturadas pelos sentidos que vão moldando a apreensão delas de acordo com as possibilidades da compreensão e do sentir. E, nesse ciclo, nada escapa ao crivo natural da comparação com nosso repertório cultural, ou seja, todas as outras coisas que, de alguma forma, passaram e passam por nossas vidas. São muitos os filtros que nos fazem comparar o vivido e o visto com o que ainda há por ver e viver.


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O encontro com o inédito é, de fato, uma contingência do ser e do estar no mundo. A vida é “um só facear com as surpresas”, sugeria Riobaldo em Grande sertão: veredas. Mas ele mesmo, no vaguear das ideias, também propõe que essas surpresas são confrontadas com a experiência do viver individual e coletiva “vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada”.

Assim, não nos é possível encarar as surpresas do mundo com um espanto virginal; apanhamos o que se apresenta com os limites da história que temos. A covid-19, por exemplo, que assombrou o mundo com seu poder de contágio nos remeteu a outras pestes e epidemias. Nesse resgate, buscamos soluções imediatas no repertório da ciência e da prática daqueles que viveram os infortúnios pandêmicos e os registraram. Adaptamos o conhecido à nova realidade para entender o que se passa e, fundamentalmente, para que o surto – com suas novidades e flagelos – não nos fosse de todo desconhecido e assombroso.

É impossível ao ser humano, esse bicho da terra cultural, não associar o novo ao antigo, porque a vida é sempre referenciada e filtrada pelos cinco sentidos e por um legado  gigantesco de história, de conhecimento, de valores, de traumas, de anseios, de intenções, de ideologias, de afetos e de tentativa de isenção e de imparcialidade no entendimento das coisas nos seus tempos.

E como não é facultada a nenhum vivente a oportunidade de não comparar, cria-se nas relações sociais, por educação e por necessidade, a deliberação de calar ou não calar as analogias que ocorrem rapidamente nas sinapses e no espírito, depois de recolhida a apreensão do mundo. Podem não ser comunicadas, mas as comparações vivem lá dentro de cada um de nós, maquinando o consciente e o inconsciente no ajuste do entendimento.

A beleza dialética do Tejo

Fernando Pessoa, na voz de seu heterônimo Alberto Caeiro, oferece-nos uma comparação bastante inusitada e instigante que comprova essa atuação dos filtros comparativos na leitura do mundo. “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.” Nessa analogia dialética, contraditória e lírica, o bardo português sinaliza que a afeição despreza, às vezes, um componente tácito e acordado socialmente: a beleza e a importância histórica e mítica incomparáveis do rio Tejo aos olhos dos lusitanos. Nessa deliciosa provocação poética, há a desconstrução do processo comparativo usual, por meio de um paradoxo, para restabelecer novamente a comparação, agora mediada pela dileção, pelo carinho, pela inclinação do espírito.

Na poesia, evidentemente, esse processo cai bem aos olhos do leitor que maravilhado e cúmplice aceita o que parecia paradoxal como exatidão inconteste. Mas, para além do universo literário, a porca torce o rabo, porque propõe uma comparação com critérios injustos.

Brasileiros e argentinos sempre pelearam dentro e fora dos gramados por suas verdades, em um jogo comparativo que ultrapassa o tempo normal e a prorrogação e entra, invariavelmente, numa disputa infindável de pênaltis: Pelé ou Maradona, quem é o melhor jogador de futebol de todos os tempos?

A disputa é travada porque não é lá muito simples comparar dois craques de tempos, de estilos, de épocas, de companheiros, de conquistas e de países diferentes. Talvez não seja possível aos amantes do futebol desprezar todas as variáveis objetivas e subjetivas para chegar a um consenso absoluto. Pedir isenção onde a paixão corre frouxa é tarefa ingrata. O gabarito atravessa a memória afetiva e embota o julgamento. Mesmo quem não esteja ligado ao afeto pelos jogadores e países, sofre para determinar o critério justo da disputa. Pontuar o que converge e o que diverge para entregar o louro da vitória é tarefa árdua e quase impossível. A tentativa será sempre no Tejo português ou no do poeta.

Se tentarmos aproximar dois jogadores de um mesmo país, canhotos, fabulosos, geniais, também seria nada fácil. Se Maradona não supera Pelé aos olhos brasileiros, superará Messi no coração dramático argentino? Contenda difícil, sobretudo porque a comparação e apreensão estão sempre permeadas de subjetividade astuta e presas ao tempo e ao coração.


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maradona pelé

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Isso não significa que não seja impossível comparar seres e coisas, até porque vivemos comparando de um jeito ou de outro. E há, sim, modelos razoáveis de comparação que nos permitem um veredito com alguma isenção ou justiça nos processos comparativos. Para isso formulamos critérios, gabaritos e unidades de medidas, leis, consignas, rubricas que buscam equalizar os termos para permitir comparações possíveis e também razoáveis. No entanto, é possível, sim, encontrar nos critérios algumas vicissitudes que tornam a comparação corrompida ou tendenciosa.

Em tempos de polarização e ânimos exaltados, não raro, observamos alguém ser tachado de comunista, capitalista, fascista, nazista sem que haja qualquer cuidado com relação sincrônica ou diacrônica que envolva a ação, os indivíduos e os conceitos. Recentemente, uma polêmica, nesse sentido, surgiu em uma mensagem privada vazada para a imprensa, do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello. “Guardadas as devidas proporções, o ‘ovo da serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (de 1919 a 1933), parece estar prestes a eclodir no Brasil!”. O ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, em entrevista à revista Veja, rebateu afirmando que esse tipo de comparação “não contribui em nada para serenar os ânimos”. “[Adolf] Hitler exterminou 6 milhões de judeus. Fora as outras desgraças. Comparar o presidente a Hitler é passar do ponto, e muito.” Depois de ouvidas e lidas as analogias feitas pelos ministros, o simpatizante de cada lado da contenda tomou seu partido e ancorou suas certezas aderindo à comparação que melhor lhe caiu ao gosto.

É quase uma condenação, o processo comparativo é sutilmente contaminado pelas disposições do afeto; nele, muitas vezes, o comparador se sobrepõe ao objeto comparado e diz mais de si do que da analogia feita.

Quando pessoas, por exemplo, manifestam-se, em passeatas, defendendo a pátria, há em cada bandeira empunhada um projeto de Brasil defendido que destoa do outro. Os conceitos de família, de minorias, de etnias, de classes e de orientações sexuais variam e normalmente são incompatíveis entre si, mais por conta das exasperações dos valores e das idiossincrasias do que das possibilidades de coexistência. E nas comparações obtusas e apaixonadas não se encontra termo comum.

Nem mesmo um prosaico bolinho de chuva, típico nas casas brasileiras, escapa à tempestuosa peneira da dileção comparativa, como já preconizou o poeta Drummond: “Aquele doce que ela faz / quem mais saberia fazê-lo? / Tentam. Insistem, caprichando. / Mandam vir o leite mais nobre. / Ovos de qualidade são os mesmos, / manteiga, a mesma, / iguais açúcar e canela. / E tudo igual. As mãos (as mães?) / são diferentes.” Pois é, meu caro leitor, fazer comparação não é bolinho.

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