É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 22/04/2020
Em meio à covid-19, João Jonas reflete metaforicamente sobre o sentido de algumas palavras e das disposições da língua afetada por ele - o vírus
Há uma contenda entre correntes de matizes, de ideologias e de interesses diversos sobre o procedimento ideal que deve ser adotado pela população para conter, refrear, diminuir, controlar o vírus avassalador que acomete os seres humanos em escalada vertiginosa e, pelo visto, sem predileção de idade, etnia, faixa etária ou social.
O vírus não invade apenas os olhos, as narinas e as bocas dos transeuntes incautos, ele ataca também a língua e os ouvidos até de quem está em casa com circulação rara fora dela. Ataca e altera o sistema imunológico do entendimento do idioma e das pessoas, ou seja, ou daquilo que se enuncia e se compreende.
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A contenda entre sair ou não sair de casa com alguma regularidade ainda vai se arrastar um pouco até se definir as diretrizes definitivas. Enquanto isso, a discussão ficará ao sabor do vento, da eficácia dos perdigotos, do nosso sistema de saúde privado e público, da nossa resistência ao vírus e ao do convívio no lar e também à necessidade de fazer circular o dinheiro e saldar boletos.
Mas isso não impede que o vírus afete a interlocução, sobretudo a sinonímia e nos faça refletir sobre o sentido de algumas palavras e das disposições da língua afetada por ele. Vejamos um exemplo de como os verbos isolar, confinar e apartar são contagiados por esse vírus que embota os sentidos e em contrapartida, qual a posologia adequada de uso sábio deles. Segundo o Aurélio, isolar carrega em sua acepção a ideia de “afastar mau agouro”, sentido providencial em tempos de vírus, de pestes e toda sorte de visitas indesejadas. Esse verbo também propõe a ideia de pôr-se em isolamento, afastar-se do convívio social. No entanto, com a disponibilidade da internet à ponta dos dedos, a possibilidade deixa de ser remota para se tornar viável, uma vez que a voz e a imagem daqueles que queremos presentes ou não, aparecem num piscar de olhos e boca. Assim, de alguma forma, para o bem e para o mal, não estamos completamente isolados do mundo, ainda que nos falte, é verdade, o calor que só o convívio bom é capaz de oferecer.
Confinar, por sua vez, também não fica imune ao contágio. Em seu sentido mais comum, sugere limitar, circunscrever, demarcar. E, não raro, assume a ideia de encerrar, de enclausurar, de limitar e de restringir. Com a perduração indefinida do convívio compulsório, obrigatório e imposto pela situação que se apresenta, parece que cai bem o sentido de confinamento e da necessidade de acordos diplomáticos de circulação em casa para que as fronteiras do convívio, das obrigações escolares e de trabalho e de, fundamentalmente de paciência não criem embaraços na família e ponha seus membros em litígio ou mesmo em pé de guerra. Isolar e confinar ainda próximos no sentido guardam lá suas reservas de significado e de iteração social. Parece que a noção de confinamento não é de todo mal.
Os bons modos e uso adequado desses verbos podem garantir a paz na terra aos homens de boa vontade. E para que evitemos um dos significados imposto pelo verbo apartar: desunir, separar, afastar, separar contendores em uma briga é melhor evidentemente que cada um busque o seu espaço na casa sem demarcações inflexíveis ou frouxas demais e extrair, na acepção de “ fazer cessar ou desviar uma briga”, a sabedoria salomônica do convívio eterno imposta pela covid-19.
Como vaticinam o dito popular e as recomendações médicas, uma mão lava a outra e nos remediam daquilo que ainda não tem remédio. Assim, com as mãos limpas e a diplomacia no trânsito da casa, conseguiremos impor ao idioma e ao convívio compulsório a solidariedade e a compreensão necessárias para que a quarentena seja de paz aos homens de boa vontade.
*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional.
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