NOTÍCIA
Um dos principais conhecedores de sistemas de ensino do país, Mario Ghio, apresenta o contexto em que o país vivia quando o modelo foi criado e detalha ainda a importância do setor, muito voltado à necessidade de auxiliar os professores em suas longas jornadas
Há 34 anos na área educacional, a formação em Engenharia Química e as aulas em cursinhos são apenas um breve resumo da trajetória de Mario Ghio, hoje diretor-presidente da Somos Educação, um dos principais grupos de educação básica do Brasil, com escolas próprias, editoras, soluções educacionais e detentores de sistemas de ensino como o Anglo e Pitágoras. Nessa entrevista à Educação, Ghio traz um contexto em relação ao que o Brasil estava vivendo no período em que surgiu o primeiro sistema de ensino, o Anglo, e ainda uma análise sobre o setor.
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Criado no Brasil, o Anglo é o primeiro sistema de ensino do mundo?
Com esse nome, sistema de ensino, certamente sim. O Anglo criou os materiais próprios ainda na década de 60 e na década de 70 começou a ganhar escala e a vender massivamente para outras escolas e surge o conceito sistema de ensino. Mas a ideia de um material didático integrado com atividades, teorias, exercícios e calendário rigoroso surgiu no começo da década de 60.
No final dos anos 60 e começo dos 70, os vestibulares das faculdades, que eram todos isolados, se unificaram. Por exemplo, a Fuvest nasceu nesse momento. Antes de ela existir cada escola da USP fazia o seu vestibular, a Poli tinha o seu separado da FFLCH e assim por diante. Com a unificação dos vestibulares ficou evidente que algumas marcas educacionais eram mais fortes de aprovação. E a partir disso destacou-se que o Anglo era bom em São Paulo, Pitágoras em Belo Horizonte, Positivo era bom de aprovação em Curitiba e etc. Assim, as escolas privadas começaram a dizer o seguinte: se o Anglo vai bem quero usar as mesmas metodologias e materiais e nasceu o conceito sistema de ensino, que era usado em escolas de referências a partir dos resultados que conquistavam nos vestibulares.
Então foram as empresas de educação que perceberam essa necessidade e procuraram as escolas para oferecer a sua metodologia?
Partiu da demanda. As escolas batiam à porta dos grandes aprovadores de vestibulares e pediam: ‘eu quero fazer a mesma coisa que você faz, está dando certo, aí quero e que dê certo aqui’. Depois do Anglo, o Objetivo começou a fazer sua oferta, na década de 70 o Pitágoras percebeu oportunidade e também começou. As escolas buscavam por aquele que mais tinha aprovados em sua região. Não fazia sentido uma escola de Minas buscar o melhor aprovado do vestibular de São Paulo. Foi assim que esse fenômeno nasceu no Brasil inteiro.
Por que o sistema de ensino é importante para as escolas públicas e particulares? As formações iniciais e continuadas não são suficientes para preparar os educadores e gestores?
É superimportante a gente estabelecer a diferença entre um livro e um sistema de ensino. Um autor de sistema de ensino não escreve um livro, escreve um curso, ou seja, a preocupação dele não é só o conteúdo, mas como esse conteúdo vai ser dado ao longo do tempo.
Agora falando dos professores, acho que temos no Brasil dois fenômenos que são relacionados a eles e que favorecem o mercado de sistema de ensino. Um fenômeno é que os professores no país, de forma geral, para terem um bom salário, acabam dando muita aula em muitas escolas. Então, se em toda escola nova que ele for dar aula ele tiver que preparar o material didático, a aula, todos os exemplos e exercícios, fica muito pesado para ele. Já quando ele usa o sistema de ensino, existe todo um planejamento que já foi feito para esse professor. Por exemplo, sugestão de tarefa de casa já está dada, propostas de exercícios de aula já existem, sugestões de provas que podem ser aplicadas em determinadas datas no calendário também. Quer dizer, você tem uma facilitação do tempo do professor quando ele adota qualquer sistema de ensino. Quanto à formação dos professores brasileiros, notamos que ela é inferior à de países desenvolvidos. Então isso só reforça a necessidade de que quanto mais apoio, repertório e recurso estiverem disponíveis e de fácil acesso, melhor será a aula desses professores. O sistema de ensino nunca diz o que o professor deve fazer, mas ele traz recursos e se o professor quiser fazer outra coisa ele também pode.
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Segundo o Censo Escolar 2019/Inep, dos professores que dão aula no fundamental II, 46,8% não são formados na disciplina que lecionam. Já no ensino médio, o número diminui para 36,7%. Sendo assim, o sistema de ensino é peça fundamental para a educação brasileira?
Tenho certa dúvida se esses percentuais se aplicam também à rede privada. Tenho um pouco de dúvida que representa a rede pública, mas é um ótimo exemplo de quanto de apoio o professor precisa. E tem um detalhe, a obrigatoriedade de o professor ter formação na área só surgiu na LDB [Lei de Diretrizes e Bases] de 1996, mas regulada como lei depois. Eu, por exemplo, sou engenheiro químico e não sou licenciado em química. Até 96 eu podia dar aula em colégio, porque tinha conhecimento da química, mas não licenciatura. Foi a partir dessa LDB para a frente que o professor, independente de seu conhecimento, tinha que ser licenciado. Isso abriu um buraco no Brasil, pois havia excelentes professores como o médico Dráuzio Varella, que depois da LDB não pôde mais dar aula, o que acelerou o gap de professores.
Os sistemas de ensino limitam a criatividade dos professores e, consequentemente, dos alunos ou podem auxiliar, uma vez que hoje estão alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC)?
O sistema de ensino não diz o que o professor deve fazer, ele só indica recursos do que se pode fazer, seja no material didático, seja no calendário. Todos os bons sistemas de ensino possuem várias semanas ao longo do ano sem programação de material didático, justamente para o professor poder utilizar aquilo para um estudo do mês, debate, enfim, para algo que ele queira. Eu posso afirmar com bastante certeza que o sistema de ensino não limita. Ao contrário, acho que estabelece padrões mínimos de formação dos professores, de apresentação de recursos para os alunos.
Em entrevista à Educação ano passado, o senhor disse que o mercado editorial de livros educativos brasileiros é um dos cinco mais importantes do mundo. A afirmação se deve pelo tamanho da população brasileira/número de alunos e também por conta da rigorosidade pela qual os livros passam para serem aprovados, por exemplo, no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), forçando as editoras a melhorarem cada vez mais?
São vários fatores. Um: o mercado brasileiro é grande e permite investimento. Se compararmos com a América Latina é difícil o Chile, Uruguai e Colômbia isoladamente, por exemplo, terem um investimento editorial tão potente como o Brasil — dado a dimensão. Segundo motivo, o PNLD é uma régua tão alta de qualidade que, ao longo dos últimos 30 anos, sofisticou muito o mercado brasileiro. E o terceiro fator é que todas as empresas tiveram que competir entre si, obrigando o mercado editorial a se sofisticar. Sem dúvida nenhuma o Brasil está entre os top five de qualidade editorial do mundo por conta desses três fatores: volume, marco regulatório que é o PNLD, Base Nacional e a competição com os sistemas de ensino. Tanto os sistemas de ensino estão melhores hoje que competem com os editores, da mesma forma que as editoras estão melhores porque competem com os sistemas de ensino.
Competição com qualidade.
Essa é a chave, quem busca a solução é a escola. Livros profundos para professor ter liberdade ou um sistema mais estruturado que garanta que os professores estarão trabalhando o conteúdo no tempo adequado. Diria que a escola brasileira tem muito mais opção que qualquer país no mundo.
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