É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 05/11/2019
Em sua coluna, o professor João Jonas V. Sobral afirma que elaborar comparações é em si uma atividade complexa devido às singularidades dos seres e das coisas
A canção Como eu quero, da banda Kid Abelha, composta por Leoni e Paula Toller, é a primeira faixa do lado dois do primeiro e delicioso álbum, lançado em 1984. O LP do século passado, repleto de sucessos, ainda se faz presente em rádio, televisão e festas. Tocada, embala vozes e coro. Não há quem não cante a estrofe final “Longe do meu domínio/Cê vai de mal a pior/Vem que eu te ensino/Como ser bem melhor…”.
A letra lida, assim, no papel ou em uma tela pode soar bem dura. Pode sugerir que o eu lírico feminino da canção propõe ao seu interlocutor amado uma obediência canina e uma aceitação inconteste ao domínio dela para que ele não incorra no risco de cair numa gradação infernal que o levaria, fatalmente, à desgraça ou, mais precisamente, do mal ao pior. A aceitação do domínio da enunciadora da canção é encaminhada como a salvação do eu lírico. Por isso, não seria equivocada a leitura que compreendesse, nessa proposição, um vaticínio, uma premonição, uma ordem ou até mesmo uma ameaça – sobretudo porque a letra supõe que falta ao interlocutor a compreensão exata dos caminhos tortos da vida: “ Vem que eu te ensino/ Como ser bem melhor”.
No entanto, a voz suave e melodiosa da vocalista e letrista da canção combinada ao arranjo festivo e pop da canção dissipa e mascara o tom de dominação proposto na letra e deixa emergir uma atmosfera romântica de cuidado e de carinho. Essa e muitas outras canções criam armadilhas e cascas de bananas que iludem à primeira vista o distraído ouvinte que não junta letra e música ou lé com cré e, desavisado, logra entender o dito pelo não dito ou apenas o meio dito.
Para além das questões entre forma e conteúdo, a canção explora uns termos (mal, pior e melhor) que, se mal empregados, podem criar embaraços e, até mesmo, confusões interpretativas e, pasmem, diplomáticas – ainda mais quando misturam alhos com bugalhos no pantanoso e delicado terreno do público e do privado, o que nos é comum em terras úmidas tupiniquins. Nosso chefe do executivo, por exemplo, entre tantas e outras frases polêmicas e incômodas, soltou a seguinte pérola “daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão”.
A frase não soou bem em boca institucional de quem deveria chefiar a nação e mediar conflitos e não fomentá-los. A derivação imprópria do substantivo “Paraíba” em adjetivo “paraíba” é pouco polida, obviamente preconceituosa e inadequada no trato entre as pessoas e nas relações de cunho público. Sabe-se que, não raro, no Rio de Janeiro, nortistas e nordestinos são denominados “paraíbas” como forma de acomodá-los todos num balaio apartado de preconceito social e linguístico. Não que ser paraibano fosse algum demérito, mas a intenção discursiva – embutida na denominação em questão – é escolher um só dos estados e reduzir todas as outras pessoas oriundas dessas regiões numa só pecha depreciativa e discriminatória. Em São Paulo, por exemplo, ocorre o mesmo com os “baianos”. E assim, no Rio, o baiano torna-se o “empecilho paraibano”, e em São Paulo é o paraibano que se torna o “pária baiano”. Definição reducionista que, normalmente, revela mais a índole do enunciador do que a do enunciado.
Mas, para piorar a questão, há o emprego da forma comparativa de superioridade do superlativo relativo de superioridade “pior”. Na frase presidencial, salvo a denominação infeliz já tratada, o termo “pior” é um adjetivo que estabelece uma relação comparativa entre os governadores da região Nordeste do país. Na enunciação, o Comandante da nação, supõe que os governadores desses sítios são todos ruins e que o do Maranhão, em especial, é pior do que os demais. Como se a “paraibice” deles fosse se escalonando ao nível máximo de “paraibice”. Talvez a frase disparada pela vocálica metralhadora não desejasse necessariamente atirar para todo lado, talvez visasse a desferir tiro certeiro apenas em um dos governadores, o que também não a tornaria polida e razoável, mas, infelizmente, a frase atacou a todos, tachando–os de “paraíba” e de ruins no mínimo. Simplesmente porque a forma sintética do comparativo de superioridade “pior” sugere a existência do termo “ruim” para que ela se dê como comparação e como superioridade gradual. Assim, o que já era ruim na intenção ficou pior no gesto e na fala.
Na canção o termo foi empregado adequadamente como comparativo de superioridade do advérbio mal “Você vai de mal a pior”. A ação equivocada do suposto amado de conduzir a vida caminha do mal em direção ao pior. Ou seja, o advérbio vai modificando gradualmente o verbo “ir” numa sequência malfadada de infortúnios que levaria a ação a modificar-se de mal para pior.
O termo “mais”pode causar interpretações indesejadas e paradoxais em determinadas construções comparativas e distintivas. Quando alguém diz que gosta de laranja e não gosta de limão, porque laranja é mais doce do que limão, cria-se na comparação uma pane cognitiva e linguística em que lê ou ouve a frase. Uma vez que a sentença sugere que limão seja também doce, porém em grau menor do que o da laranja. Como se laranja fosse mais doce e limão fosse apenas doce. É possível que o enunciador almejasse dizer apenas que laranja é doce; e limão, azedo. Todavia a inserção do “mais” na frase impõe a ela uma comparação gradativa entre as duas frutas. O equívoco também seria notado se alguém dissesse que as serras catarinenses no inverno são mais geladas do que o sertão cearense. Desavisadamente se está comparando o caráter gélido das duas regiões. Bastaria dizer que uma região é gelada, e a outra, em contrapartida, é quente.
Voltando à enunciação pública, suponho que se fosse bem assessorada e permeável ao domínio daqueles que conheçam as flexões do idioma e as flexibilidades da liturgia do cargo, a voz presidencial não causaria os estragos e os efeitos danosos que provocou. E assim, as panes cognitivas, linguísticas e institucionais não existiriam tal qual elas se deram.
De fato, elaborar comparações é em si uma atividade complexa devido às singularidades dos seres e das coisas. O arranjo da sintaxe, da semântica e das palavras exige do enunciador o decoro necessário para que suscetibilidades não sejam feridas e as características dos seres comparados não sejam violadas. A exigência e o cuidado servem para o articulista quando escreve sobre o objeto que o ocupa, para o usuário da língua no trato republicano que a vida civil propõe e, fundamentalmente, para aqueles que exercem cargos públicos – que devem zelar pelas relações institucionais, pela diplomacia e pela dicção que a língua deve apresentar nas ruas e nos gabinetes. Paula Toller, por exemplo, deu a dica “ Vem que eu te ensino/Como ser bem melhor” e o tom da delicadeza, mesmo em texto que se supõe áspero. Foi dado o mote; que se siga o ritmo com harmonia e alguma melodia palatável.
*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional