É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 03/10/2018
Em artigo, professor cria uma história para falar sobre metonímia
A metonímia é figurinha fácil na língua. Não há quem não recorra a ela para acelerar o discurso, para encurtar o caminho da comunicação e do entendimento ou para insinuar algo. No entanto, mais do que uma figura de retórica, ela é estratégia de estilo. Quando se diz “comi um pratão no almoço”, não se deseja dizer que a enorme louça, na fome, foi devorada. Com certeza, não. Mas por substituição, por aproximação e por contiguidade se intui que, evidentemente, o falante propõe que tenha comido o contido (comida) e não o continente (prato). Assim como quem diz “não tenho teto onde morar.” Obviamente não se deseja, nessa enunciação, morar embaixo de um teto apenas ladeado por uma parede, como se uma mesa se configurasse em uma casa. O teto, no caso, é uma parte do que se almeja, que é, indubitavelmente, a casa.
Algumas metonímias, porém, são tão presentes na língua que, desgastadas, não revelam a relação de vizinhança semântica que as define, como por exemplo, a substituição da marca pelo produto ou do efeito pela causa, como em “comprei uma lata de leite moça, uma caixa de maizena, duas giletes e um pacote de cotonetes, tudo isso com o suor do meu rosto ”. Observa-se que os produtos sinalizados pela marca foram comprados com o dinheiro que adveio do trabalho que consequentemente provocou o suor. Daí basta um pequeno salto para perceber a relação metonímica e o passe de mágica que ela oferece na aceleração do discurso, da comunicação e do entendimento.
Por conta do seu caráter simbólico, as metonímias não são encontradas facilmente em dicionários, no sentido literal, ainda que se esbarre com a definição delas neles. O “aurélio” ( metonímia de dicionário), por exemplo, traz a seguinte definição: “consiste em designar um objeto por palavra designativa doutro objeto que tem com o primeiro uma relação de causa e efeito, de continente e conteúdo, lugar e produto, matéria e objeto, abstrato e concreto, autor e obra, a parte pelo todo etc.”.
Algumas metonímias são bastante capciosas. Escondem mais do que revelam. Agem em surdina, sugerem mais do que propõem. Ajudam a esconder e a omitir o gesto ou a intenção. Nós brasileiros (a parte) costumamos atribuir ao país (o todo) as mazelas que são nossas. Quando dizemos “O Brasil é um país corrupto”, substituímos o abstrato pelo concreto. E assim nos isentamos magicamente da culpa pelo mal nacional. Arquivamos na nuvem da abstração todo o mal — como se o país, um ser desprovido de gente ou só provido de gente má (excluindo-se o falante, claro) fosse capaz de ser autonomicamente corrupto. Na abstração corrompida se eliminam os agentes da corrupção.
Agora, outras abstrações perigosas circulam na penumbra do coração do Brasil. Nos corredores e nas salas de Comissões do Congresso Nacional, alguns seres maléficos agem na defesa de interesses pessoais e corporativos. Associados a congressistas, fazem acordos a que chamamos de lobby. Uma metonímia sorrateira, uma vez que se substitui o mal feito (os acordos nem sempre lícitos) nos corredores e nas salas contíguas pelo próprio nome (em inglês) do lugar em que se articula o que se articula. Essa abstração escamoteia os verdadeiros agentes envolvidos nas relações — nem sempre republicanas — estabelecidas nos porões da República (outra metonímia). E assim, o lobby passa a ser o único malfeitor fantasmagórico a assombrar os corredores de Brasília.
Há situações em que as metonímias gastas acabam por prejudicar aqueles que são nomeados por elas. Quando caracterizamos alguém por “sem-teto” ou “sem-terra”, de alguma forma estamos dizendo que esse indivíduo é um ser desprovido de casa e também de trabalho. No entanto, e por conta do ativismo político desses grupos e de quem antagoniza com ele, definimos toda essa gente, na maioria das vezes, como militantes a serviço de um sindicato ou de um partido ou como invasores avulsos.
Enfim, as metonímias são recursos férteis e retóricos profícuos para quem deseja, por trás dela e na penumbra, ou, na lata, dizer não o dito e o não dito.
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