NOTÍCIA
Se para alguns um livro é apenas uma posse, para outros é uma comunhão com o autor. Leia na coluna de Gabriel Perissé
Publicado em 17/04/2018
O colecionador inescrupuloso talvez nem tenha lido o romance de Alencar. Quer apenas o prazer da posse. Almeja colocar num pedestal particular o objeto ambicionado por outros. Já o professor, especialista em literatura brasileira, contemplador da beleza verbal, conhecedor profundo de José de Alencar, sonha em viver a alegria de tocar com as próprias mãos a obra em si, e sentir-se em comunhão com o autor.
O diálogo entre a narradora e o pobre professor revela a paixão da leitura:
O livro que eu comprei não é um livro qualquer, ele disse, sem conseguir disfarçar seu orgulho. É a primeira edição de O Guarani, um exemplar raríssimo, uma de apenas duas cópias existentes no mundo.
Que incrível.
Mais incrível ainda quando você leva em conta que minha tese de doutorado foi sobre O Guarani. Que eu conheço esse livro tão bem quanto meu próprio corpo, ele disse. E então, olhando para um ponto a noroeste da minha cabeça, declamou: na vida selvagem, o sentimento é uma flor que nasce como a flor-do-campo e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol. Nos tempos da civilização, ao contrário, o sentimento torna-se planta exótica, que só vinga e floresce nas estufas, isto é, nos corações onde o sangue é vigoroso.
Lindo.
Lindo é pouco.
O que haveria de mais cruel, no mundo da leitura apaixonada, do que furtar de um leitor assim dedicado seu livro mais querido? Conhecer o livro como se fosse o seu próprio corpo é conhecimento visceral. Leitura viva e sofrida. Carne, papel e sangue vigoroso.
Mas, como disse o outro, tudo pode ser roubado. Se a vida pode ser roubada, se o tempo, a alegria e a esperança podem ser roubados, por que não haveria de ser também afanável a mais afável das criaturas, o indefeso livro? E não é isso o que também acontece quando não devolvemos o livro que alguém um dia nos emprestou? Ou seríamos capazes de defender o aforismo malandro que li certa vez na entrada de um sebo: “livro não se empresta… nem se devolve”?
O professor tem suas teorias. E sua arte de ensinar está baseada em algumas premissas e critérios. Em diálogo com um aluno, o professor Cícero (nome escolhido a dedo) faz sua apologia:
[…] autor bom é autor morto. O resto é estagiário de autor […]. Se o problema é esse, o aluno falou, então não tem problema, esse escritor se matou em 2005. Com uma expressão de desprezo, Cícero falou: 2005 foi ontem. Quando falo de autor morto, falo de quem morreu há cinquenta, cem anos. Autores cuja obra já passou intacta pelo filtro do tempo.
A autora, pela palavra da narradora, brinca com sua própria realidade de escritora estreante. Giovana Madalosso ainda terá de esperar muitas décadas para que algum professor universitário, pensando como Cícero, lhe dê a possibilidade de ser estudada.
Em outro momento, o professor Cícero está ouvindo as considerações de um aluno sobre O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. No final da apresentação, pontifica:
Só tem uma coisa que tem me intrigado em vocês, alunos. Por que essa preferência por autores estrangeiros? […] O Brasil tem autores maravilhosos: Machado, José de Alencar, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, Guimarães Rosa, Clarice. Ninguém vai perder nota por escolher um autor daqui ou dali, mas tentem abrir os horizontes, superar essa miopia de povo colonizado, vai ser bom pra vocês.
Abrir livros e horizontes verticaliza nossa postura diante da realidade. Embora tudo possa ser roubado, do ponto de vista do ladrão sem limites, de uma coisa jamais poderemos ser privados: da nossa capacidade de tornar preciosas e raras nossas leituras pessoais.
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