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Quando aos 18 anos ingressei no curso de Medicina Veterinária, percebi que o ambiente universitário ofereceria riquíssimas possibilidades de ampliação de meu repertório cultural. Dentro deste espírito fui assistir a uma palestra sobre filosofia, dirigida a alunos e docentes do Instituto de Ciências Biológicas da USP. Durante os 60 minutos iniciais da palestra, tive dificuldade em acompanhar o raciocínio do palestrante, que utilizava linguagem com a qual eu não estava familiarizado. Creio que eu não estava sozinho, pois parte da plateia começou a debandar antes do encerramento.
Foi quando o palestrante, percebendo a evasão, anunciou: “não vão embora, se vocês ficarem mais 30 minutos, provarei que vocês não existem”. Com receio de descobrir que eu não existia mesmo, aproveitei a deixa e me juntei ao grupo que abandonava o evento. Me arrependi, pois até hoje não sei que argumentos o palestrante utilizaria para aniquilar minha existência. Além disso, talvez eu teria mais subsídios para refletir a respeito do processo de “surgimento”, “construção” ou ‘invenção” de um determinado distúrbio ou transtorno. Ele sempre existiu ao longo da história e apenas foi identificado tardiamente? As condições ambientais recentes favoreceram seu aparecimento? A questão é um pouco mais complexa do que parte da comunidade médica deixa transparecer, como se todas as doenças existissem a priori e o desenvolvimento científico esteja pura e simplesmente possibilitando sua identificação e diagnóstico de maneira mais precisa. Infelizmente, avançaremos muito pouco enquanto o diálogo entre profissionais da área médica e das ciências humanas continuar tão pobre.
Há alguns anos assisti a uma palestra de um competente neurologista brasileiro. No início da fala, ele pediu para aqueles que acreditavam que o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) não existia que levantassem as mãos. Não sei se todos permaneceram com as mãos abaixadas por convicção ou se ficaram intimidados pela pergunta. Quando membros da comunidade médica ainda se preocupam em rebater a crítica daqueles que dizem que estes transtornos não existem é porque paira um desconforto no ar. Afinal, nenhum profissional se preocupa em provar, por exemplo, que um tumor de mama existe.
O que o neurologista quis dizer com a “existência” de uma dada condição? Na verdade, o que a comunidade médica tenta rebater com esta pergunta é a ideia de que o TDAH e outros transtornos foram “inventados” devido a interesses econômicos e corporativos. Obviamente que esses interesses existem, para o TDAH e muitas outras doenças. Entretanto, não é porque há interesses bilionários por trás do tratamento do câncer que vamos dizer que ele foi criado com este fim. A partir do momento em que um transtorno como o TDAH, por exemplo, é incorporado aos manuais médicos, tem seus critérios de diagnóstico definidos, centenas de estudos avaliando as alternativas terapêuticas disponíveis, negar a sua existência não faz nenhum sentido. Por outro lado, devemos aprofundar as discussões entre visões muito distintas de saúde e doença. Na visão do neurologista ao qual me referi, a organização social não teria nenhuma participação na origem do transtorno. Ele existiria a priori, independentemente da influência ambiental. Discordo desta visão. Minha convicção foi reforçada após a leitura de um estudo realizado com quase um milhão de crianças canadenses e publicado pela Canadian Medical Association em 2012. Os autores calcularam a porcentagem de crianças que recebiam tratamento medicamentoso para o TDAH, no caso, o metilfenidato. O número médio de crianças, por volta de 3%, não surpreendeu, era muito semelhante ao observado em outros países, como a Alemanha, a Dinamarca e um pouco menor do que o observado nos EUA.
O que me deixou intrigado foi a relação entre o mês de nascimento da criança e a probabilidade de ela ser diagnosticada e tratada. As nascidas em dezembro tinham o dobro de chance de receber metilfenidato quando comparadas àquelas nascidas em janeiro. Influência astrológica? Obviamente que não. As nascidas em dezembro, devido ao calendário escolar, eram as mais novas da turma, enquanto que as nascidas em janeiro eram as mais velhas. Ou seja, se a criança estiver entre as mais novas da turma, dobra a chance de receber um diagnóstico do transtorno. Estes dados dão respaldo à ideia de que não há uma determinação, mas sim uma predisposição biológica para o transtorno. Não é possível olhar para a criança sem levar em consideração as demandas de ambiente. É claro que há crianças que estão entre as mais novas da classe e não apresentam dificuldades de aprendizagem. Mas, para algumas, ser a mais nova da sala é um desafio a mais a ser enfrentado. Dependendo de seu amadurecimento, uma predisposição que poderia ser superada caso o ambiente fosse mais favorável passa a ser um transtorno, que deve ser tratado. Condições ambientais favoráveis, e a escola é essencial para criá-las, podem evitar o surgimento e o agravamento não só do TDAH, mas de muitos outros transtornos.