NOTÍCIA
Quem desconversa, encobre e disfarça; aqueles que desdizem ou desmentem, na realidade, mentem novamente
Publicado em 15/12/2017
José Cândido nos brinda com outro jogo linguístico em O coronel e o lobisomem (José Olympio). O simpático coronel Ponciano de Azeredo Furtado ordena a um funcionário que dê explicações: “Sem hora a perder, mandei que desembuchasse”. Em outro momento, ele anuncia uma viagem: “Saí de madrugadinha, na hora em que o fresco da manhã começa a desembuchar”.
O substantivo “bucho” tem vários significados (“estômago”, “barriga”, “ventre” etc.), substantivos referentes a seres vivos. Na primeira oração, “desembuchar” significa “dizer logo o que tem de falar”, ao passo que, na segunda, “o fresco da manhã” na verdade não tem “bucho”, mas os leitores entendem e apreciam a metáfora.
Por que não “brincar” com o idioma nos moldes d´O coronel e o lobisomem? Não poderíamos “desaparafusar mágoas” e “desatarraxar ‘grilos’” que, às vezes, habitam nossas mentes, para podermos ser livres e “destravados”?
Anos atrás, um concurso vestibular usou como tema de redação uma fotografia de uma velha catraca numa praça de São Paulo. Embaixo da “borboleta” enferrujada, as palavras: “Monumento à Catraca Invisível – Programa para Descatracalização da Própria Vida, Junho 2004”.
Nem todos perceberam a crítica sociopolítica subjacente e muitos desconheceram o revestimento da palavra “catraca” em neologismos como “descatracalizar” e “descatracalização”.
Virar a catraca de um ônibus é uma coisa, mas há outras catracas na vida, travadas para alguns cidadãos, mas destravadas para os desprivilegiados: dificuldades, como a falta de oportunidades de emprego, estudo e moradia. A existência de preconceito e intolerância com base em raça, religião, região e identidade sexual, de fato, “catracaliza” a vida de muita gente.
Os problemas de alguns com a recepção dos neologismos com des- (“descatracalizar” etc.), me levam a acreditar que o ensino do léxico não recebe a atenção que merece. Para alguns estudantes, a disciplina de língua portuguesa é a mera memorização de uma lista de estruturas gramaticais e sintáticas que devem ser evitadas.
Com respeito aos verbos de origem nominal (descortinar, desvendar, desvencilhar), é mais fácil identificar a raiz ou base nominal do primeiro exemplo (cortina). Mas o que significa? Em que contexto poderia ser usado? “Desvendar” pode levar o incauto a afirmar que a base é o substantivo “venda1” (trocar ou transferir algo por dinheiro) e quando se trata de “um pano usado para cobrir os olhos das pessoas”, temos “venda2”, um bom exemplo de homógrafo e homófono.
Mais complicado para alguns é “desvencilhar”, cuja base nominal é “vencilho” (ligadura para atar objetos). Literalmente, é “soltar ou desatar os vencilhos”. Mas o que falta no ensino do léxico é conhecer o sentido figurado dos vocábulos: “desvendar os segredos”, “desvencilhar as tramas de um discurso político”.
É obvio que “descortinar” se refere ao ato de tirar ou abrir cortinas, mas o conhecimento vocabular deve ir além. Quem descortina pode avistar à distância algum objeto ou pode perceber o que não é evidente aos outros. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Academia das Ciências de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e Editorial Verbo) exemplifica: “Descortinou um barco que aproximava”.
É importante, no ensino, o estudo das acepções figuradas do léxico e, por outro, mais atenção aos afixos (prefixos e sufixos) da língua. Eles que permitem a expressão de diferentes significados. Um ponto positivo é que os principais dicionários do português têm aprofundado a descrição dos afixos. O estudo deles é parte essencial do vocabulário. Notem o papel que os prefixos fazem com uma reles base nominal, como “terra”: aterrar, enterrar, desterrar, desenterrar e desaterrar.
É um mundo que se descortina com um mero prefixo.