NOTÍCIA
Estudos comprovam que intervenções voltadas à primeira infância beneficiam saúde, bem-estar, desenvolvimento intelectual e produtividade no trabalho na idade adulta
Publicado em 26/10/2017
Uma das pesquisas avaliou o projeto São Paulo Carinhosa, política municipal integrada para a primeira infância, executada entre 2013 e 2016 na capital paulista, com foco nas famílias em situação de vulnerabilidade com crianças de 0 a 6 anos. “Houve um esforço de articulação, provocando as secretarias a pensar no que fazer para tornar a cidade mais integradora para as crianças, aproveitando o que já existe, mais do que planejar novas ações, explica a coordenadora do estudo, Renata Bichir, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM).
Um exemplo de ação conjunta entre assistência social e educação surgida no programa foi a Fila Social, que priorizou famílias mais vulneráveis, selecionadas via cadastro único, nas filas de vagas para creches. “Houve excelente envolvimento das escolas com as ações da São Paulo Carinhosa”, relata a pesquisadora, que cita ainda a aproximação com as famílias e lideranças locais – fundamentais para a execução da política.
O estudo também destacou a legitimidade política da agenda, ‘costurada’ pelo comitê de coordenação do programa com diversos níveis de governo, que promoveu algum grau de articulação entre os burocratas que trabalham diretamente com a população. Um ponto forte do trabalho diz respeito à capacitação dos agentes comunitários de saúde, que permitiu que eles atuassem de forma mais global nas visitas domiciliares. “Não ficaram restritos à sua área, aprenderam a observar aspectos como a violência doméstica e a avaliar o desenvolvimento das crianças por meio de brinquedos e estímulos, repassando isso aos pais”, comenta Gabriela Lotta, da UFABC, que também participou da investigação. A pesquisa sugere medidas de formação similares para outros agentes públicos, como professores e assistentes sociais. Propõe, ainda, o reforço de ações da habitação (melhoria das condições de vida nos cortiços) e de segurança. “A temática da violência apareceu com destaque, afetando, por exemplo, a decisão de usar ou não a rua como espaço de lazer”, acrescenta Renata.
“Ambientes violentos, insalubres e precários impedem as crianças de desenvolver o seu potencial”, diz Leonardo Yánez, representante na América Latina da Fundação Bernard van Leer, da Holanda, entidade parceira do SP Carinhosa. A requalificação dos espaços urbanos é algo essencial para a primeira infância, diz. “Há uma tendência a superproteger as crianças e a encerrá-las dentro de casa, das creches ou escolas, só que não lhes damos a liberdade de ser donos da cidade.” Para Yánez, mudar essa mentalidade é o mais difícil.
Tornar as cidades lugares mais amigáveis para as crianças é o foco de um dos projetos da fundação, o Urban 95, realizado em países como México, Vietnã, Índia, Holanda, Israel e Colômbia, além do Brasil. A iniciativa busca entender melhor como uma cidade pode ser vista da perspectiva de 95 cm – a altura média de uma criança de 3 anos – para assim visualizar o tipo de moradores que as cidades terão 20 ou 30 anos à frente.
Para além do planejamento da cidade, no Brasil, talvez o maior desafio ainda seja o da continuidade da política. “Garantir a continuidade é o que faz a política avançar e isso depende de articulação das diversas redes de apoio – moradores, conselheiros e organizações são parceiros estratégicos”, lembra Renata.
Como enfatiza Gabriela Lotta, é preciso criar uma nova cultura de trabalho, levando em conta que, para um problema de natureza complexa como a primeira infância, é preciso pensar em respostas de múltiplas dimensões e em soluções igualmente complexas.
A criação de planos municipais voltados aos primeiros anos de vida com essa concepção intersetorial consta do Plano Nacional pela Primeira Infância, de 2010, e foi enfatizada no Marco Legal da Primeira Infância, tornado lei em março do ano passado (Lei 13.257/2016). O marco sugere a criação de uma série de programas e serviços que garantam o desenvolvimento integral e integrado das crianças de 0 a 6 anos de idade, e reforça a relevância de investir em políticas de atendimento a essa faixa etária, dadas as comprovadas consequências positivas em sua vida futura.
Em 2015, a Rede Nacional Primeira Infância lançou a publicação A Intersetorialidade nas Políticas para a Primeira Infância e, neste ano, o Guia para Elaboração do Plano Municipal pela Primeira Infância, que reforçam a necessidade de coprodução nas ações sociais dirigidas a crianças pequenas e estão disponíveis na internet. A mesma rede também promove um curso on-line de formação de gestores e líderes para estimular e coordenar esse processo, evidenciando a importância do assunto.
Uma das pesquisas sobre o programa nacional Bolsa Família, De qual burocracia as políticas públicas intersetoriais e federativas precisam?, realizada entre 2015 e 2016 por Gabriela Lotta e Vanessa Elias de Oliveira, ambas da Universidade Federal do ABC (UFABC), afirma que a intersetorialidade se faz presente tanto no desenho dessa política, como na sua implementação. O programa consiste na transferência direta de renda para as famílias mais necessitadas e condiciona o benefício ao acesso aos direitos sociais básicos de saúde, alimentação e assistência social.
O relatório lembra que o Bolsa Família, existente há mais de 10 anos, é identificado como uma política com alto grau de efetividade e inovação. Isso graças a instrumentos como o cadastro único das famílias beneficiárias, realizado pelos municípios, que permite que aquelas que se enquadram no perfil exigido passem a receber transferências de renda.
Outro aspecto relevante é que para receber o dinheiro mensal é preciso atender a uma série de requisitos, como garantir a frequência escolar e manter a carteira de vacinas das crianças em dia, e, no caso das gestantes, realizar o pré-natal. A investigação também aponta que o cadastro único serve como base de informação para o desenho de outros programas, possibilitando políticas mais focalizadas.
Mas o programa enfrenta desafios como a dificuldade dos municípios em promover a interação entre as diferentes secretarias e em integrar suas ações àquelas relacionadas ao Sistema Único de Assistência Social. A análise chama ainda atenção quanto aos procedimentos educacionais e de saúde, condicionantes para o acesso ao programa, que são de responsabilidade dos municípios, mas não são alvo de incrementos de processos, o que pode tornar frágeis as bases da política.
Primeira infância: estimativa é de que no mínimo 350 cidades tenham planos