NOTÍCIA

Arte e Cultura

Autor

Gabriel Perissé

Publicado em 31/10/2017

Ler o filme e ver o livro

Gabriel Perissé escreve sobre O filme da minha vida (longa dirigido por Selton Mello) e reflete sobre adaptações cinematográficas

Gabriel Perissé escreve sobre O filme da minha vida (longa dirigido por Selton Mello) e reflete sobre adaptações cinematográficas

Cena de ‘O filme da minha vida’, dirigido por Selton Mello (Crédito: Divulgação)

O livro que inspirou o belo O filme da minha vida (dirigido por Selton Mello) chama-se (foi escrito em espanhol) Un padre de película. A tradução do título original seria Um pai de filme, ou Um pai de cinema. O autor, Antonio Skármeta, foi o mesmo que escreveu O carteiro e o poeta, obra de grande sucesso nas décadas de 1980-90. Filmada também [por Michael Radford].
Quando se assiste a um filme depois da leitura do livro que lhe deu origem, começam as comparações e outras viagens. Selton Mello escreve um breve prefácio para o livro editado pela Record, e Skármeta faz uma sugestiva aparição no filme, como dono de um bordel. O cineasta gosta de ler o escritor. O escritor gosta de ver o trabalho do ator e cineasta.
Este novo livro e este novo filme trazem de novo uma história de amor, ou de amores. O protagonista é um jovem professor, um tradutor iniciante e, mais ainda, um aprendiz da gramática amorosa. A iniciação sexual simboliza a curiosidade pelo conhecimento da vida. A garota do bordel e o professor conversam:
— E o que você ensina, professor?
— De tudo um pouco. Mas prefiro literatura e história.
— Geografia não?
— Geografia também.
— Eu sou louca por geografia […]. Sei os países e as capitais. Digo os nomes e imagino como serão.
— Bolívia?
— Essa é mole. La Paz.
— Espanha?
— Fácil. Madri.
— Tchecoslováquia.
Essa ela não soube responder. Mas o professor compreende (ele, que tem apenas 20 anos de idade e nunca reprovou ninguém em sua ainda curta experiência docente). Mais tarde, envia-lhe como lembrança um globo terrestre.
No filme, o jovem professor ensina francês no interior do Rio Grande do Sul. No livro, o mesmo professor corrige redações numa aldeia chilena:
Dedico a maior parte do tempo a fumar e a apontar meus lápis Faber Castell número 2. Com eles corrijo as redações de meus alunos, e quando não gosto de alguma coisa, apago com a borracha que têm na ponta e lhes sugiro alguma frase melhor.
Escrever e reescrever a vida é tarefa para uma vida inteira. Não gostar é pouco; precisamos sugerir alternativas. O grande objetivo da educação consiste em buscar o melhor. Indicar o pior até que é fácil. Difícil mesmo é abrir caminhos.

Nem tudo se conta

Tanto o livro como o filme ensinam que nem tudo pode ser lembrado, nem contado de uma vez por todas. Nem contado para todos de uma só vez. A vida tem ambiguidades e mistérios. Uma das personagens, ao revelar grave segredo ao protagonista, espanta-se com sua reação:
— […] Você é professor, Jacques! Deveria saber como as coisas da vida são complexas.
Só esta frase já vale a leitura. Este deveria ser um pré-requisito a ser lembrado sempre na formação docente: saber que a vida humana é complexa. Literatura e cinema fazem ver e tocar essa complexidade.
Mas é preciso perceber a complexidade com clareza e simplicidade. A frase tem de ser simples. Uma imagem complexa não pode ser confusa. Selton Mello, além de ser diretor e roteirista do filme, interpreta o papel de Paco, amigo do jovem professor (no livro, Paco chama-se Cristián), e em dado momento faz também a Jacques uma consideração importante sobre a diferença entre homem e porco:
— O homem sabe o que quer. Ele sabe que é um homem. O porco, não. O porco é porco o tempo todo. Ele não sabe que é um porco. Ele é só um porco. Porco completamente porco. Essa é a diferença do homem pro porco.
Isto não está exatamente assim no livro. Mas poderia estar. O trabalho de adaptação cinematográfica é leitura criativa. É cocriação. Selton Mello nos ensina a ler, assumir vozes e dar corpo ao livro. O personagem não disse exatamente isso, mas certamente o disse agora.
Selton Mello se inspirou numa passagem do livro, em que o professor, conversando com um aluno, explica a diferença entre a vaca e o menino:
— Ora, você sabe o que quer e tem consciência de si mesmo. A vaca é vaca todo o tempo. Não tem nem consciência de que é uma vaca. É totalmente vaca. Já a consciência o torna livre.
Revelar o enredo e, sobretudo, o desfecho de livros e filmes seria agir como um spoiler, ou seja, como um espoliador, um sabotador, um desmancha-prazeres.
O prazer estético reside na descoberta pessoal das entrelinhas e na liberdade da interpretação. Nenhum resumo pode suprir a fruição que cada um experimenta em contato com as palavras, as imagens, as possibilidades, com os olhares que os personagens nos lançam. A diferença entre um leitor consciente e um leitor subserviente está em assumir o risco da leitura, ruminando o seu sentido.
E não é que a leitura da vida é complexa mesmo?


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