NOTÍCIA
Gabriel Perissé escreve sobre O filme da minha vida (longa dirigido por Selton Mello) e reflete sobre adaptações cinematográficas
Tanto o livro como o filme ensinam que nem tudo pode ser lembrado, nem contado de uma vez por todas. Nem contado para todos de uma só vez. A vida tem ambiguidades e mistérios. Uma das personagens, ao revelar grave segredo ao protagonista, espanta-se com sua reação:
— […] Você é professor, Jacques! Deveria saber como as coisas da vida são complexas.
Só esta frase já vale a leitura. Este deveria ser um pré-requisito a ser lembrado sempre na formação docente: saber que a vida humana é complexa. Literatura e cinema fazem ver e tocar essa complexidade.
Mas é preciso perceber a complexidade com clareza e simplicidade. A frase tem de ser simples. Uma imagem complexa não pode ser confusa. Selton Mello, além de ser diretor e roteirista do filme, interpreta o papel de Paco, amigo do jovem professor (no livro, Paco chama-se Cristián), e em dado momento faz também a Jacques uma consideração importante sobre a diferença entre homem e porco:
— O homem sabe o que quer. Ele sabe que é um homem. O porco, não. O porco é porco o tempo todo. Ele não sabe que é um porco. Ele é só um porco. Porco completamente porco. Essa é a diferença do homem pro porco.
Isto não está exatamente assim no livro. Mas poderia estar. O trabalho de adaptação cinematográfica é leitura criativa. É cocriação. Selton Mello nos ensina a ler, assumir vozes e dar corpo ao livro. O personagem não disse exatamente isso, mas certamente o disse agora.
Selton Mello se inspirou numa passagem do livro, em que o professor, conversando com um aluno, explica a diferença entre a vaca e o menino:
— Ora, você sabe o que quer e tem consciência de si mesmo. A vaca é vaca todo o tempo. Não tem nem consciência de que é uma vaca. É totalmente vaca. Já a consciência o torna livre.
Revelar o enredo e, sobretudo, o desfecho de livros e filmes seria agir como um spoiler, ou seja, como um espoliador, um sabotador, um desmancha-prazeres.
O prazer estético reside na descoberta pessoal das entrelinhas e na liberdade da interpretação. Nenhum resumo pode suprir a fruição que cada um experimenta em contato com as palavras, as imagens, as possibilidades, com os olhares que os personagens nos lançam. A diferença entre um leitor consciente e um leitor subserviente está em assumir o risco da leitura, ruminando o seu sentido.
E não é que a leitura da vida é complexa mesmo?