NOTÍCIA
Para psicólogo austro-americano, violência e tabus contidos nessas narrativas tinham poder de atração sobre as crianças por seu conteúdo humano e por simbolizarem a saga do herói, correspondente ao desenvolvimento delas próprias
Publicado em 21/08/2017
A criança esquizofrênica
Nos Estados Unidos, o diagnóstico de esquizofrenia era aplicado na maioria dos casos de psicose, quer se tratasse de adultos ou de crianças. Esquizofrenia era sinônimo de delírio e de insanidade aguda ou crônica. Mesmo sabendo que um diagnóstico nunca abrangia a riqueza da complexidade clínica, Bettelheim adotou essa classificação, distinguindo três tipos de esquizofrenia:
– No nível mais baixo, o sujeito deixa de agir por si e também não reage a seu meio. Desinveste todos os aspectos da realidade interna e externa. É o caso da criança autista muda.
– No nível intermediário situa-se o sujeito que, até certo ponto, ainda age, embora seus atos não estejam de acordo com suas tendências inatas. Todos os seus atos são motivados pela angústia de morte, onipresente em sua realidade interna. Como ele retira o investimento da realidade externa, não pode haver uma interação com essa realidade. É o caso da criança autista não muda.
– No terceiro nível da esquizofrenia, encontra-se o sujeito que age, sobretudo, em função de uma realidade externa superinvestida, como prisioneiro de um combate extremamente violento com o mundo externo, que parece hostil e esmagador. Para Bettelheim, essa é a forma menos grave de esquizofrenia.
A criança autista
Para o pensador vienense, o autismo se originaria no encontro defeituoso de um ser com o mundo externo, nos primeiros dois anos de vida. Durante esse período, são os familiares, e mais especialmente a mãe (ou quem ocupa esse lugar), que representam o mundo circundante aos olhos da criança. Para que a criança pequena sinta o desejo de se relacionar com esse mundo, e para que possa desenvolver sua personalidade, suas primeiras trocas e contatos devem se colocar sob o signo da mutualidade.
O psicanalista entendia mutualidade como a relação em que um age com o outro, manifestando sua maneira de ser. Segundo ele, a falta de mutualidade no encontro com a realidade externa constituía o fator principal de retraimento autístico, temporário ou crônico, da criança pequena. Bettelheim atribuiu as consequências da falta de mutualidade pelo lado da mãe, ou de quem ocupava o lugar materno (por exemplo, os cuidadores nos berçários ou os substitutos maternos quando a criança era privada do contato materno por guerras ou perdas precoces).
Diante dessa falha materna, a criança pequena viveria a experiência traumática de que seus atos não exerciam nenhuma influência no comportamento da mãe. Suas tentativas de transmitir seus afetos, manifestar suas necessidades e receber uma resposta que ela considera apropriada eram inúteis. Então, para ficar distante da angústia de morte, a criança manteria a imutabilidade de seu mundo interno.
Dessa forma, a criança autista estava alienada numa lógica de sobrevivência. O fechamento de si mesma a protegeria da agressividade do mundo externo. Em seus tratamentos, Bettelheim propunha que a criança autista pudesse viver a experiência de uma mutualidade que faltou no passado, encontrar razões para agir sobre o mundo e desenvolver sua personalidade. Tratava-se de propor à criança um mundo em que ela pudesse entrar em pé de igualdade com o outro. Um mundo que se adaptasse à sua loucura e aos seus sintomas, que eram para ela uma necessidade de sobrevivência.
Dificuldades do fim
No final da vida, aos 87 anos, problemas graves de saúde levaram-no a restringir consideravelmente suas atividades. A morte de sua mulher também o abalou profundamente. Bruno Bettelheim pôs fim à própria vida, asfixiando-se com um saco plástico amarrado a uma borracha.
Um grande escândalo estourou nos Estados Unidos algumas semanas depois de sua morte. Em consequência da publicação, em alguns grandes jornais, de cartas de ex-alunos da Escola Ortogência de Chicago, a imagem do bom “Dr. B.”, como era chamado, se apagava por trás da figura de um tirano brutal, que fazia reinar o terror em sua escola. Acusaram-no então de ele não aceitar nenhum visitante, a não ser, e em condições muito restritivas, as famílias das crianças que ali estavam.
Logo os ataques da mídia norte-americana se estenderam à sua vida e à sua obra. Os atributos de impostor, de falsificador e de plagiário se somaram ao de charlatão – possivelmente por ele não ser médico. Esse tumulto teve pouca repercussão na França, onde ele gozava – em razão do sucesso do seu livro A fortaleza vazia, sobre as origens e o tratamento do autismo, e do programa destinado à Escola Ortogênica, realizado para a televisão francesa em 1974 – de um imenso prestígio que só foi prejudicado pelo declínio geral das ideias filosóficas e psicanalíticas nos anos 1970.