NOTÍCIA

Edição 229

É preciso liderar

Em tempos de gestão democrática, atuação do diretor aparece como um dos principais fatores de impacto sobre a aprendizagem. Resta, no entanto, redesenhar o cargo em função da nova realidade do mundo educacional

Publicado em 10/05/2016

por Rubem Barros

 

© Shutterstock

 
A produção cultural do século 20, em especial a cinematográfica, foi pródiga na construção da figura dos diretores escolares como pessoas rígidas, autoritárias, com faces sempre mal-humoradas e permanente disposição punitiva. Do poético Zero de comportamento (1933), do francês Jean Vigo, ao mais recente Escola de rock (2003), de Richard Linklater, a sisudez impera. Mas esta imagem, em xeque já há um bom tempo, busca uma reconstrução nos dias atuais, que pedem novos parâmetros: competência técnica para o exercício de funções que hoje requerem bem mais do que no passado, e capacidades de diálogo e liderança suficientes para agregar toda a comunidade escolar em torno de objetivos comuns, definidos coletivamente.
Pois é justamente uma das questões mais intimamente ligadas a esse redesenho da função que fará piscar as primeiras luzes do Plano Nacional de Educação (PNE) em termos de prazos das 20 metas que irão vencer. A Meta 19 estabelece que, num prazo de dois anos – com vencimento em junho de 2016 – devem estar asseguradas as condições para a “…efetivação da gestão democrática da Educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto.”
Meta de difícil medição direta de resultados, tanto é assim que o PNE explicita apenas indicadores auxiliares em sua régua de controle – tais como a existência de conselhos municipais de Educação e se eles se reúnem permanentemente – a gestão democrática é hoje mais intuída do que conceitualmente definida de forma consensual. Pressupõe a participação da comunidade, mas isso é pouco para caracterizá-la.
Deverá tomar mais corpo à medida que a estratégia 1.8 da meta começar a rodar. Trata-se do Programa Nacional de Formação e Certificação de Diretores Escolares, que terá início em julho próximo e certificará os primeiros participantes em dezembro deste ano.

Conceito em aberto

“Ninguém sabe exatamente o que significa a gestão democrática”, brinca – um tanto a sério – Beatriz Cortese, coordenadora de Projetos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), entidade responsável desde 2012 pelo Prêmio Gestão Escolar, iniciativa do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed). “Em muitos casos, há uma crença de que a gestão democrática passe por satisfazer os desejos da comunidade. Mas, de fato, está mais ligada aos processos decisórios da instituição”, conclui.
Yvelise Arco-Verde, ex-secretária de Educação do Paraná e ex-presidente do Consed, dá a sua definição: “É a administração do espaço público escolar pelo conjunto da comunidade, garantida a especificidade das discussões pedagógicas. A tomada de decisão não é sempre de todos. Os objetivos gerais da escola são discutidos e aprovados pela comunidade, mas sua execução é elaborada pela equipe técnica”, defende.
Mas, ainda que haja níveis de decisão ancorados em conhecimentos específicos que, em tese, são apenas dos educadores, o compartilhamento de decisões pode ser fator decisivo para a criação de um bom ambiente escolar, em que todos se sintam parte de um projeto coletivo e, por esse motivo, cumpram melhor suas funções. “Há muitos anos, fizemos uma pesquisa que pedia a todos que definissem a escola que queriam. Todos queriam duas coisas em comum: respeito e diálogo”, lembra Tereza Perez, diretora da Comunidade Educativa Cedac, entidade que faz formação de gestores e diretores em 50 municípios Brasil afora. “Trabalhamos para gerar sentimento de pertencimento de todos à escola, coisa que o diretor precisa construir. O respeito – ou o desrespeito – que existe na escola começa pelo diretor”, completa.
Ex-secretária de Educação Básica do MEC e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Maria-Beatriz Luce já faz aí uma primeira ressalva de algo que não é consensual no campo. Para ela, um pressuposto é que a função de direção da escola seja coletiva, e não apenas de uma pessoa. Ou seja, o diretor não pode prescindir de uma equipe que tenha “pessoas com competências técnicas e políticas para exercerem papéis diferenciados, para fazerem as coisas funcionarem no plano da docência”.
Essa visão de gestão coletiva por vezes se opõe a outra, que começou a tomar corpo no Brasil nos anos 90, que é aquela que preconiza a responsabilização dos gestores em função dos resultados educacionais, normalmente controlados por meio de avaliações de larga escala, como Prova Brasil, Enem e as diversas avaliações estaduais e municipais implantadas desde então. Também chamada de new public management (nova gestão pública), ou, depreciativamente, de gerencialismo, essa corrente defende uma formação específica para os diretores, que não necessariamente sairiam do corpo pedagógico da escola. Aqui, o diretor deve ser um líder, mas, pela necessidade de resultados, pode assemelhar-se mais a um executivo de empresa do que à imagem do educador conciliador.
Na verdade, mesmo com outras motivações, a questão está posta há tempos. Passa, entre outras coisas, pela construção de uma carreira específica de diretor escolar, como existe no Estado de São Paulo, ou pela assunção de que a função é temporária e que a remuneração extra deve se restringir ao período do exercício do cargo, que deveria mudar de ocupante em função de eleições a cada dois ou três anos.
O que leva a duas questões essenciais na discussão do papel diretor: como deve ser o processo de escolha e quais as competências que deve ter o diretor/gestor escolar.
 

 

Escolha

Apesar de a indicação política estar ainda entre as formas mais difundidas de seleção de diretores escolares – segundo o questionário da Prova Brasil 2011, 22% dos diretores haviam sido indicados por políticos e 21% eleitos, sendo estas as duas formas então mais frequentes de escolha – cada vez mais se vai chegando a um consenso de que o processo deve mesclar elementos que atestem qualificação técnica, anterior ou posterior ao momento em que se é alçado ao cargo, à de articulação política do gestor.
A eleição pura e simples começou a ser instituída nos anos 80, sendo o Paraná o primeiro estado a promovê-la, em 1984, segundo a pesquisadora Heloísa Lück. Ainda na mesma década, os estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Acre e o Distrito Federal também adotaram essa via.
No Paraná, com o tempo, foram sendo acrescidos outros critérios à seleção. Nos anos 90, havia uma prova. Depois, foi introduzida a necessidade de uma formação. “Defendo que haja em primeiro lugar um processo eleitoral, com apresentação de propostas pedagógicas a serem defendidas e, na sequência, uma formação de pelo menos 180 horas, com conteúdos de administração escolar, prestação de contas, políticas educacionais, funcionamento dos sistemas, gestão democrática e questões pedagógicas e curriculares”, diz Yvelise Arco-Verde, do Paraná.
No Estado do Ceará, a eleição foi introduzida em 1995. Eram elegíveis os professores da rede, com experiência no magistério. “Combinava-se seleção pública e caráter técnico. Hoje, nas escolas de período integral, a escolha é diferenciada, sem seleção pela comunidade. Recorre-se ao banco de gestores, criado já naquela época”, esclarece Sofia Lerche, professora de Políticas Públicas da Uninove e ex-secretária de Educação do Ceará.
Sofia lembra que a cearense Sobral foi um dos municípios que primeiro acentuaram o caráter mais técnico do cargo, algo depois absorvido pela rede estadual. Um dos indícios do efetivo impacto da atuação dos diretores no estado é o reconhecido poder de mobilização comunitária para as ações educacionais no Ceará, elemento desejável em qualquer rede ou escola e imprescindível para melhorar gestão e ambiente escolar. A ex-secretária lembra que, no caso cearense, houve três momentos de diferentes desafios para os processos de seleção seguida por eleição, decorrentes de necessidades identificadas em diferentes épocas. “O primeiro foi tornar a escola mais atrativa, o que foi feito. Depois, a questão era desenvolver competências para gerir recursos escassos. Num terceiro momento, a questão foi dar respostas em termos de resultados de aprendizagem”, lembra. A cada momento, houve um tipo de formação específico para responder à demanda.

Indicação seletiva

Já o Estado de Santa Catarina caminha numa outra vertente. Para o secretário estadual Eduardo Deschamps, atual presidente do Consed, a opção é por indicação, porém com um processo seletivo que busca critérios transparentes. “Eleição pressupõe mandato e que o eleito não possa ser retirado a qualquer tempo, o que pode não ser bom em caso de mau desempenho”, defendeu, ao expor o modelo em evento do Movimento Santa Catarina pela Educação, em março último.
Desenhado a partir da observação de outros sistemas (Inglaterra, estados americanos, Pernambuco), a indicação catarinense requer que o candidato responda a três requisitos avaliados em etapas do processo: competência, liderança e compromisso. No caso do primeiro, é preciso ter curso de formação de gestores e apresentar um plano de ação para a escola, de quatro anos, a ser submetido a consultores externos para análise técnica; uma vez aprovado, o quesito liderança prevê a submissão desse plano à comunidade escolar e sua aprovação; por fim, o compromisso significa cumprir o plano e a legislação vigente durante seu exercício. Em caso de não aprovação na primeira ou segunda etapa, o processo volta ao ponto inicial com outro candidato.

A fórmula foi estabelecida por decreto em 2013, pois o governo não conseguiu votar o projeto de lei, que será reapresentado. Segundo Deschamps, o sistema está organizado em torno de metas de aprendizagem de cada escola. Articuladas a elas e ao plano de ação estão não só a escolha do diretor, mas a descentralização de recursos, o sistema de avaliação estadual, de bonificação para escolas e a atuação de conselhos e representações escolares.
Apesar de dar mais ênfase à eleição do que o colega catarinense, Maria-Beatriz Luce, da UFRGS, lembra que Porto Alegre (RS) há tempos tem um sistema de gestão democrática e participativa. Nele, a comunidade identifica potenciais líderes, discute projetos de gestão, vota e depois o monitora, acompanha e fiscaliza. “Mas isso tem desmoronado, pois está muito difícil encontrar pessoas que se disponham a assumir o cargo”, diz ela, tanto em referência à rede municipal como à estadual. “As secretarias têm tido de fazer movimentos, deslocar professores de uma escola a outra, fazer nomeações impostas”, revela.
As razões de tudo isso podem ser mais ou menos acentuadas em cada rede, mas parecem presentes em quase todas: pouca organização institucional e falta de apoio do sistema, cultura de conflito entre educadores e gestores, pouca disposição docente para o trabalho coletivo, excesso de demandas externas, falta de meios para a realização das tarefas.
“Mas há também uma mentalidade excessivamente fiscalizatória, autoritária, controladora”, diz Maria-Beatriz. “O diretor precisa sair da escola para ir ao conselho tutelar, de segurança, à secretaria. Há cobranças de órgãos de controle fiscal. A gratificação não contempla as despesas. Cobrança e responsabilização requerem participação, apoio, acompanhamento e formação continuada”, completa.

Perfil, o que dá certo

O alerta da ex-secretária é importante, especialmente se cotejado com o resultado de pesquisa empreendida pela Fundação Itaú Social para avaliar o impacto dos diferentes processos de seleção de diretores na aprendizagem dos alunos. Tomando como base o período de 2007 a 2011, o rendimento dos alunos de 5º e 9º anos do fundamental, segundo a Prova Brasil, e as taxas de abandono escolar, o estudo chega à conclusão de que o perfil do gestor escolar é mais importante para a aprendizagem do que a forma de seleção adotada.
Ainda que possa padecer de um certo simplismo por não considerar outros fatores que podem determinar o desempenho – apesar das robustas bases de dados analisadas – as conclusões convergem para percepções consagradas no campo educacional, como a de que a permanência do gestor por prazos mais longos é favorável à escola e aos estudantes. No caso, a pesquisa aponta um intervalo entre cinco e 15 anos como o tempo que aparece como mais produtivo no sentido da aprendizagem. Outros fatores positivos para o exercício da direção são o fato de ter formação no magistério e o incentivo à formação continuada de professores.
Ainda segundo a pesquisa, os diretores indicados (politicamente ou não) permanecem menos tempo nas escolas; os indicados politicamente são menos atentos à formação continuada, ambos aspectos negativos. Curiosamente, os indicados politicamente são mais propensos a ter formação no magistério, o que é benéfico.
 

 

Competências

Mas, afinal, quais seriam as competências requeridas para a boa gestão hoje? Tereza Perez, do Cedac, lista um rol delas: capacidade de priorizar problemas e estabelecer planos de ação e metas; habilidade para fazer parcerias; estimular o trabalho coletivo; participar da elaboração e implementação do PPP; respeito à diversidade, compromisso com a aprendizagem dos estudantes; domínio das ferramentas tecnológicas; domínio dos aspectos legais do cargo.
Beatriz Luce acrescenta uma competência vital no cenário atual: a boa comunicação. E faz mais um alerta: em meio a tantas demandas que chegam à escola, o diretor e sua equipe não podem deixar de promover suas “funções precípuas”, ou seja, propiciar vivências, aprendizagens, desenvolvimento humano, olhar coletivo sobre a cidade e o mundo.
Ao descrever como o processo de seleção do Prêmio Gestão Escolar foi realizado, Beatriz Cortese, do Cenpec, sublinha fatores dos processos de gestão que, à primeira vista, podem parecer básicos, mas que foram enfatizados em resposta a dificuldades constatadas.
O ponto de partida é a realização de um diagnóstico com toda a comunidade escolar para identificar as ações a serem realizadas. Depois, é preciso realizar um plano que case diagnóstico e ação. “É comum que o diagnóstico aponte, por exemplo, que há pouca participação das famílias, e os planos não indiquem nenhuma ação para melhorar esse aspecto, condição para bons projetos de gestão”, diz.
No Prêmio, são analisados ainda os aspectos da antecipação de problemas (planejamento) e estabelecimento de processos; organização da rotina escolar; os mecanismos de escuta da comunidade; como garantir as condições de aprendizagem (desempenho dos alunos, organização do ambiente escolar, parcerias externas).
No caso do ProGestão, capacitação a distância oferecida por MEC e Consed, os temas dos cinco módulos também dão uma pista do que está em pauta hoje: ambiente escolar, equipe gestora, participação colegiada, aprendizagem dos alunos; avaliação inclusiva. Nos dois casos, ressalta Beatriz, há ênfase no como fazer, pois os cursos de formação inicial ficam muito centrados nos fundamentos e cuidam pouco da dimensão prática.
 

Formação em serviço

Não só pelos buracos da formação, mas também pelo rol das novas exigências que recaíram sobre o diretor a partir da Constituição de 1988 e da onda de responsabilização que chegou ao Brasil nos anos 90, o diretor de hoje é bem diferente daquele que povoava as escolas até os anos 70. “É muito recente essa ideia de um papel muito profissional, ninguém sabe ao certo ainda ser diretor”, avalia a diretora de Desenvolvimento Educacional do Cedac, Roberta Panico.
Nas redes que assessora, o Cedac tem adotado a estratégia de formar um técnico da secretaria de Educação que faz a interlocução direta com o diretor, como um formador. Esse técnico é peça-chave de um trio gestor, composto por ele, pelo diretor, e pelo coordenador pedagógico. Assim, coordenador e diretor acompanham questões de aprendizagem e políticas públicas da secretaria, o primeiro mais ligado às ações e o segundo acompanhando os processos para poder tomar as decisões.
Já a Fundação Itaú Social, que também assessora várias redes estaduais e municipais, utiliza processos com pontos similares. Os técnicos da instituição formam tutores que irão trabalhar com os gestores escolares a partir de uma matriz de competências previamente estabelecida. A distinção está na metodologia de coaching, termo do mundo corporativo não utilizado para não gerar resistência no meio educacional. Em Sobral, por exemplo, a rede constituiu uma gerência de tutoria, com técnicos experientes, muitos ex-diretores, que fazem a interlocução com os gestores escolares, em modelo similar ao inglês (leia texto na pág. 56). Patrícia Mota, gerente de Educação do Itaú Social, ressalta que deve haver um cuidado particular com o perfil dos tutores. “Não pode ser alguém que vá à escola dizer o que o diretor tem de fazer, ou para criticá-lo. É preciso trabalhar junto, ouvir, dar e receber feedback.”
O trabalho vem tendo bom resultado, diz Patrícia, pois proporciona aos gestores uma referência, alguém que oferece um segundo olhar sobre as questões cotidianas. A tutoria é tratada como uma formação complementar, em serviço, um plano de formação, com metas a serem alcançadas.
Todo esse movimento para dar concretude às práticas dos gestores, alicerçadas no binômio diálogo com a comunidade/acompanhamento de resultados não pode, no entanto, pressionar o diretor de forma a fazê-lo deixar para trás algo que está na essência da escola: o respeito a tempos e espaços que lhe são próprios, tendo como objetivo não o que está fora dela, mas o que ocorre durante as vivências daqueles que ali se encontram. E que isso permita a construção de um novo imaginário sobre a escola.

MEC lança certificação 
Universidades e institutos federais de educação que se credenciaram no MEC após chamada pública feita em março último ofertarão, a partir de julho, cursos e certificações para formação de diretores já em exercício e para candidatos à função.
Os padrões dessa formação serão decididos por um comitê gestor do Programa de Formação e Certificação de Diretores Escolares, composto por membros indicados por MEC, Consed e Undime. Serão 30 mil vagas disponíveis e aqueles que completarem o curso satisfatoriamente receberão um certificado válido nacionalmente.
Os cursos terão foco em quatro pontos (gestões administrativa, financeira e de conflitos e legislação educacional brasileira) e serão oferecidos em duas modalidades: nível de aperfeiçoamento, com 180 a 200 horas, com seis meses de duração, para diretores e candidatos à função; nível de atualização, com 100 a 120 horas, duração de quatro meses, para diretores em exercício já com a certificação inicial do Programa.
A certificação também terá duas vertentes. A inicial, a ser pleiteada por diretores e candidatos à função, a ser obtida por meio de exame com questões de múltipla escolha e abertas. Já a avançada, restrita a diretores que estejam no exercício da função, incluirá “análise e avaliação de portfólios elaborados a partir de orientações recebidas nos cursos de extensão em nível de atualização do programa”, segundo a assessoria do MEC.

 

Autor

Rubem Barros


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