NOTÍCIA
As diferenças, os tropeços e as contradições das obras de referência no Brasil
Os elementos significativos que fazem parte da rede de relações chamada língua se chamam formas.
Formas livres são as que se podem pronunciar isoladamente, constituindo-se num enunciado completo, como livro, caneta, pasta.
Formas presas são as que se associam às formas livres e não se podem pronunciar separadamente, como o {-s} final de “livros”, que significa “mais de um”, ou como as terminações verbais.
Formas dependentes são os elementos átonos que dependem de outro vocábulo, mas não se prendem diretamente a ele, como os pronomes pessoais átonos que podem pronunciar-se antes, depois ou no meio do verbo: eu te amo, amo-te, amar-te-ei.
As formas livres, presas ou dependentes se chamam também morfemas.
Os morfemas são representados entre chaves. Assim, {-a} é o morfema do feminino. Os sufixos e os prefixos são morfemas, são formas presas. O que caracteriza o morfema, ainda que não possa ser pronunciado isoladamente, como o {-s} que marca o plural, é o fato de ele ser dotado de significação.
#R#
Confusão no meio da palavra |
Há línguas em que, além do prefixo (que se acrescenta no início de uma forma base) e do sufixo (que se acrescenta no fim de uma forma base), há o infixo, que se acrescenta no meio da palavra base. Na língua iana ou ianam (do grupo ianomâmi), por exemplo, o infixo {-ru} indica plural: kuwi (curandeiro), kuruwi (curandeiros). Em mísquito, língua indígena do Panamá, a noção de posse é indicada por infixos: napa (dente), naipa (meu dente), nampa (teu dente). Vogal ou consoante de ligação é o fonema que se acrescenta entre a forma base e o sufixo para facilitar a pronúncia. Se acrescentamos o sufixo {-eira} à forma base “licor”, temos “licoreira”. Se, no entanto, à palavra “café” acrescentarmos o sufixo {-eira}, teremos de pôr um t antes: cafeteira. O t não é um morfema, porque não tem significado, e sua função é apenas fônica. Da mesma forma, se acrescentarmos a forma “cultura” à forma “café”, teremos “cafeicultura”. A vogal i tem apenas função de eufonia, não tem significação. O dicionário Aurélio, no verbete próprio, define infixo adequadamente como um afixo (morfema) interno, mas exemplifica com as consoantes de ligação de “chaleira” e “motorneiro”. Ora, as consoantes de ligação não podem ser infixos, porque não são morfemas, não têm significação. Felizmente, o Houaiss não endossa essa lição. Não há infixo em português. |
O plural de “bege” |
No verbete “bege”, o Aurélio declara que se trata um adjetivo invariável, isto é, sem flexão de gênero ou de número. No entanto, o Aurélio contradiz a própria lição do seu verbete, ao dar um exemplo, retirado de Os barões da Candeia, de Ana Elisa Gregori, em que “bege” aparece flexionado no plural: “As meias grossas, beges, protegem as pernas brancas”. |
A separação de “parapsicologia” |
Todos os minidicionários (do Houaiss, do Aurélio, de Evanildo Bechara) cometem o mesmo erro na segmentação da palavra “parapsicologia”. Esses dicionários separam assim as sílabas: pa-ra-psi… Ora, não existe hífen em “parapsicologia”. Portanto, a separação silábica tem de ser a seguinte: pa-rap-si… (cf.: si-lep-se; lap-so; co-lap-so; rap-só-dia, etc., em que as consoantes ps aparecem em sílabas distintas). |
A conjugação de “explodir” |
No verbete “explodir”, o Aurélio ensina que se trata de um verbo defectivo, a que falta a 1ª pessoa do presente do indicativo e, consequentemente, todo o presente do subjuntivo. No entanto, ao lado dessa lição, no mesmo verbete, aparece a conjugação completa do verbo explodir, com todas as formas que o dicionário declara inexistentes! |
A pluralidade de um “gol” |
O Houaiss, no verbete “gol”, informa que o plural “gols” é um “barbarismo consagrado pelo uso” e ensina que os plurais adequados são “goles” (ô), “golos” (ô) e “gois”. “Golos” é usado em Portugal, mas “gois” só existe na cabeça dos que participaram da elaboração do dicionário. Todas as palavras oxítonas terminadas em -ol têm a vogal aberta, no singular e no plural: sol, anzol, terçol, lençol, futebol. Assim, a palavra “gol”, com vogal fechada, não é barbarismo, mas apenas a adaptação gráfica do goal inglês. O plural “gols” é legítimo, porque continua sendo a palavra inglesa adaptada graficamente. “Gois”, com vogal fechada, é que é barbarismo, uma vez que, se fosse palavra portuguesa, teria de ter a vogal aberta, como a palavra “rol”, com a vogal aberta, oriunda do francês rôle, com vogal fechada. “Rol” é palavra legitimamente portuguesa, porque tem a vogal aberta. |
A dificuldade de “adequar” |
No verbete “adequar”, o Aurélio informa que se trata de um verbo defectivo, conjugável apenas nas formas arrizotônicas, isto é, nas formas em que a acentuação tônica recai nas desinências e não na raiz. Assim, o dicionário conjuga o verbo “adequar” apenas com duas formas no presente do indicativo: nós adequamos, vós adequais. O Houaiss, contrariando bons manuais de conjugação e boas gramáticas, conjuga o verbo “adequar” em todos os tempos e pessoas: eu adéquo, tu adéquas etc. Domingos Paschoal Cegalla, em seu Dicionário de dificuldades da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, s.v. “adequar”, “adequar-se”), ensina que, se “adequar” não fosse defectivo, sua conjugação deveria ser como a do verbo “recuar”, com a acentuação tônica no u. E conclui: “Não existem as formas adéqua, adéquam, com e tônico”. |
A variável afro |
O Aurélio registra o verbete “afro” como adjetivo, sem indicação de gênero, o que pressupõe tratar-se de adjetivo variável, ou como substantivo apenas masculino. O Houaiss registra “afro” como adjetivo e substantivo apenas masculino, e exemplifica: moda afro, cabelo afro, comidas afro (apesar de registrar o plural afros, para designar antigo povo da África). Essa é a orientação espúria do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) que também registra “afro” como adjetivo e substantivo apenas masculino (portanto invariável). O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa registra afro tanto como adjetivo quanto como substantivo variável (afro, afra). O Dicionário de Domingos Paschoal Cegalla registra o verbete como adjetivo e substantivo, flexionado, com os seguintes exemplos: carnaval afro, ritos afros, músicas afras. |
Quando usar maiúsculas em siglas e acrônimos? |
Siglas se leem letra por letra e todas se escrevem com maiúsculas: PMDB, UFRJ, CPMF, etc. Acrônimos, ao contrário, se leem como verdadeiros substantivos da língua (neologismos): se o substantivo é próprio, apenas a primeira letra é maiúscula: Otan, Nasa, Vasp, Ufes, Bradesco, Petrobras, Volp, etc. Se o substantivo é comum, todas as letras são minúsculas: radar (radio detecting and ranging), sonar (sound navigating and ranging), laser (light amplification by stimulated emission of radiation), aids ou sida (síndrome da imunodeficiência adquirida), etc. Se o acrônimo tem três letras, todas se escrevem em versal, mesmo que não sejam nomes próprios: ONU, TAP (Transportes Aéreos Portugueses), ECA (Escola de Comunicações e Artes), LER (lesão por esforço repetido), etc. Os dicionários definem adequadamente o que é sigla e o que é acrônimo, mas erram nos verbetes que representam acrônimos ou siglas. O Aurélio, embora registre “aids”, com minúsculas, registra SIDA e UFES; o Houaiss registra apenas sida, com minúsculas, mas, embora defina acrônimo e sigla adequadamente, no verbete “sigla” registra Petrobrás entre outros exemplos. |
A lógica do hífen |
A propósito do Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), somos todos reféns de suas imprecisões ou inadequações, sobretudo no que diz respeito ao uso do hífen, que é um samba do crioulo doido. Nestes pares de formação idêntica, só o primeiro leva hífen; o segundo, não: Pé-de-meia; pé de moleque. Para-choque; paraquedas. Perde-ganha; vaivém. Cachorro-quente; elefante branco. Infantojuvenil; maníaco-depressivo. Ano-novo; ano velho. Norma-padrão; desvio padrão. Bom-senso; bom gosto. Pronto-socorro; pronto atendimento. Carne-seca; carne viva… Qual é a lógica? Todas as gramáticas e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, ensinam que “azulferrete”, como adjetivo, é invariável em gênero e número; como substantivo, só o primeiro elemento se flexiona: “azuis-ferrete”. Mas neste ponto o Volp inova ao admitir também o plural dos dois elementos, quando a palavra for empregada como substantivo: “azuis-ferretes”. |
O status de statu quo |
A expressão latina statu quo é parte da expressão maior in statu quo ante, que significa “no estado em que (estava) antes”. O correto é statu quo, sem o s final porque se trata do ablativo, como ensina Paulo Rónai no seu belo livro Não perca o seu latim (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, com exemplo de Carlos Drummond de Andrade). Os dicionários, contudo, só registram a forma inadequada “status quo”. O nominativo, status, com s final, só se usa isoladamente e significa a posição ou a situação de um indivíduo num grupo. Não é de estranhar essa lição esdrúxula, já que o latim é frequentemente mal-empregado na linguagem jurídica. Na literatura jurídica, a expressão de cujus é utilizada como sinônimo de “testador”. O Houaiss e o Aurélio dão-na como “falecido”. Trata-se de parte da frase “de cujus successione agitur”, isto é, “(aquele) de cuja sucessão se trata”. Ora, em latim, cujus é genitivo do pronome relativo qui. Nunca foi substantivo comum. Infelizmente, já é expressão consagrada pela tradição e faz parte da metalinguagem jurídica. |