NOTÍCIA
Assediados pela necessidade de se parecer próximos da "vida real", mais próximos do mundo do trabalho e da tecnologia, o tempo e o espaço escolares estão na berlinda
A escola está em crise. Não que isso seja uma novidade. Desde a invenção da escola moderna, raros foram os momentos em que a escolarização e a “função” da escola não estivessem sendo questionadas e sofrendo tentativas de servir aos mais diversos fins. A posição do professor em pé, investido de autoridade num degrau superior, escrevendo em um quadro-negro para uma sala de alunos imóveis em suas carteiras, é um dos alvos preferenciais daqueles que veem no espaço escolar um ambiente ultrapassado ou incapaz de dar conta das demandas do mundo contemporâneo. Para alguns pensadores mais radicais, a própria existência da escola não seria mais necessária – é esse o ponto fundamental do livro Sociedade sem escolas, do filósofo austríaco Ivan Illich, publicado em 1971 (disponível em edição digital, em espanhol, Ediciones Godot, La sociedad desescolarizada).
O questionamento do espaço escolar continua a produzir ramificações: em muitos países, o homeschooling é formalmente aceito como uma alternativa educacional para famílias que preferem não confiar na escola oferecida pela sociedade; algumas correntes pedagógicas enxergam graves limitações na escola tradicional, e propõem escolas sem turmas definidas ou em que as salas de aula deem lugar a espaços de trabalho.
Mas o último grande ponto de inflexão da escola se deu com a popularização das tecnologias de informação e comunicação. De repente, o computador com acesso à internet se tornou o grande aliado – e por que não substituto? – do professor. A velha sala de aula offline, baseada em exposição oral, escrita à mão, livros e cadernos, passou a ser o modelo a ser combatido por educadores e especialistas. Afinal, esse é o maior argumento, o aluno de hoje não deveria estar em um espaço tão apartado da “vida real”. A partir de então, a escola é assediada para adotar todo tipo de ferramenta tecnológica – lousas digitais, plataformas inteligentes e demais dispositivos.
A “vida real” é também a responsável por atribuir novos deveres à escola: preparar os alunos para as exigências do mercado de trabalho ou para o convívio no trânsito. Mais do que isso, caberia à escola formar consumidores mais conscientes ou jovens mais instruídos sobre a sexualidade de maneira a evitar doenças sexualmente transmissíveis. Para os críticos, tudo e mais um pouco se encaixa dentro do papel da escola.
“Quanto mais a escola se aproxima da ideia de que ela tem de ser útil, mais ela esvazia a legitimidade que tem na sociedade como espaço. Porque aí eu só a julgo por algo que ela é incapaz de fazer”, diz José Sérgio Fonseca de Carvalho, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e colunista de Educação. “A instrumentalização da educação pode ter várias faces. A mais evidente hoje é a instrumentalização pelo mercado, mas também há uma face – e é preciso que se critique isso –, que é a instrumentalização política”, explica.
E quando a escola é “instrumentalizada” para as finalidades mais diversas, ela se propõe a fazer coisas que não pode fazer. “E o que a escola poderia fazer, não faz: o exercício, a prática, a formação. Num mundo em que tudo é concebido como um meio para um fim, que bom ter um lugar em que as coisas não são assim”, afirma Carvalho.
No livro Em defesa da escola – Uma questão pública (Autêntica, 2013), Jan Masschelein e Maarten Simons, da Universidade de Louvain, na Bélgica, reagem contra o que chamam de condenação da escola por parte daqueles que querem vê-la servir a algo: “[A] escola não deveria, sob qualquer pretexto, ser colocada a serviço da construção da comunidade em projetos políticos de cultivo e de socialização. O modelo escolar contribui para a construção da comunidade em si, e é o tempo e o lugar em que a própria experiência de comunidade
está em jogo”.
Masschelein e Simons baseiam muitas de suas teses no conceito de skholé, palavra grega que pode signifi car tanto “tempo livre” ou “descanso” quanto “estudo”, e é raiz da palavra latina schola, que originou “escola”. O tempo da skholé, ou seja, o tempo escolar, é “o tempo tornado livre e não é tempo produtivo”. O trecho abaixo, do livro citado, ilustra como o espaço e tempo escolares provocaram uma ruptura em relação ao tempo da vida produtiva:
“Na escola grega, não era mais a origem de alguém, sua raça ou ‘natureza’ que justificava seu pertencimento à classe do bom e do sábio. Bondade e sabedoria foram desligadas da origem, da raça e da natureza das pessoas. (…) É claro que, desde o início, havia diversas
ocupações para restaurar conexões e privilégios, para salvaguardar hierarquias e classificações, mas o principal e, para nós, o mais importante ato que a “escola faz” diz respeito à suspensão de uma chamada ordem desigual natural. Em outras palavras, a escola
fornecia tempo livre, isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua ‘posição’) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo”.
A crítica de que a escola não é capaz de preparar seus alunos para a vida real, ou seja, a vida do trabalho, da cidadania ou da tecnologia colide com essa ideia de que o tempo da escola é um tempo não produtivo, de estudo e exercício. “Com a escola, certas práticas, como a ginástica, deixam de ser meramente funcionais”, aponta Carvalho. Sem uma finalidade expressa, as atividades escolares se tornam objetos de exercício e fruição. Já no século 5º a.C., lembra o professor, há registros de que a ginástica era praticada apenas por sua beleza.
Na escola atual, o exercício de algo por seu próprio bem (ou por seu caráter formativo) pode ser ilustrado de diversas maneiras. Originalmente, o estudo dos mapas tinha uma importância militar e, portanto, seu ensino era essencial para nações em guerra. No mundo contemporâneo, é impensável um exército utilizar mapas em papel para se orientar nas batalhas. “Isso não é um sinal de obsolescência da escola; o significado que ele tem no contexto escolar é outro. É o exercício da pura prática, que tem valor formativo. É diferente de sua funcionalidade prática”, afirma o professor.
A escola que conhecemos hoje é uma reprodução mais ou menos fiel dos grupos escolares de meados do século 19, a tentativa moderna de reunir alunos em salas no mesmo prédio, divididos por faixa etária (por “séries”), cada uma dessas salas sob o comando de um professor, que ensina a matéria de maneira igual para todos. “Toda a discussão sobre a escola moderna passa pela invenção/fabricação do grupo escolar, ou escola seriada. Nesse momento, tempo e espaço se redefinem”, afirma Miriam Waidenfeld Chaves, professora da pós-graduação em educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Sempre houve relação de ensino e aprendizagem, que ocorria por meio de uma aprendizagem direta num ofício, na observação, de uma relação mais prática. A invenção da escola vem justamente apartar as crianças da vida, de uma educação assistemática para uma sistemática – a escolarização”, diz a professora. Ou seja, para a escola tal como conhecemos poder existir, ela precisa garantir um espaço que aparte os estudantes de suas atividades externas e minimize suas diferenças.
De fato, antes de a escola pública e coletiva se tornar o modelo hegemônico, o conhecimento era dividido de maneira desigual: as crianças ricas tinham seus preceptores e, nos centros urbanos europeus, havia salas mantidas por apenas um professor, que vendia suas aulas para aqueles que quisessem pagar para aprender a ler e a escrever. “Mesmo nas corporações de ofício, o mestre falava no pé do ouvido dos aprendizes. Não era o mesmo conhecimento para todos”, aponta Miriam.
Nas palavras de Masschelein e Simons, na escola o professor “fala para um grupo de alunos e, ao fazê-lo, fala a cada um, individualmente; não fala para ninguém em particular e, portanto, fala a todos. Uma relação puramente individual não é possível, ou é constantemente interrompida, e o professor é obrigado a falar e agir publicamente”. Ou seja, o que o professor oferece a um grupo de alunos é um “bem comum”.
Na opinião de Miriam, a escola foi uma grande invenção para inserir os indivíduos na modernidade, na esteira da criação dos Estados nacionais – e da necessidade de difundir a cultura nacional e seus valores. Por muito tempo, observa a professora, esse modelo de escola foi capaz de dar as respostas adequadas a uma sociedade em processo acelerado de urbanizaçãoe industrialização. “Enquanto você está num momento de florescimento, a escola parece que dá certo. É a grande instituição que possibilita a mobilidade social. Um diploma do primário garantia àqueles que vinham do campo e fi lhos de trabalhadores livres se inserirem no mercado de trabalho moderno”, diz.
O cenário começa a mudar a partir das profundas transformações sociais da década de 1960, mais notadamente com a crise das instituições sociais e o questionamento da autoridade que culminaram nos protestos de maio de 68 na França. Novos grupos sociais – tais como sindicatos de trabalhadores, inclusive de professores – emergem, se organizam e passam a questionar o papel da escola. “A autoridade de um professor em 1940 é diferente da de hoje, há uma nova relação entre professor e aluno”, observa a professora Miriam. Assim como aquele mesmo diploma primário que há pouco mais de 50 anos poderia garantir um emprego e ser a chave para a mobilidade social hoje quase não tem mais serventia.
Na prática, o conhecimento que a escola é capaz de transmitir aos seus alunos (ou construir com eles) provavelmente terá pouca influência direta nas suas atividades profissionais futuras. Ao contrário, aprender sobre mapas, equações, química orgânica, análise sintática ou movimentos da ginástica não tem uma finalidade clara para os estudantes – o que é mais uma crítica que a escola contemporânea sofre. É comum ouvir alunos reclamando que o que eles estudam “não serve para nada” – além, é claro, de ajudar a passar no vestibular.
Por outro lado, o que significa “formar para o mercado”? Dotar os alunos de conhecimentos que possam ter uma utilidade pode ser uma resposta, mas, mesmo na escola técnica, consertar um motor ou montar um circuito eletrônico não deixam de ser tão somente exercícios. Carvalho, da USP, aponta que para um banco ou uma indústria, um treinamento de dois meses é capaz de ensinar a um funcionário como o trabalho funciona. “A matemática que preciso, útil para a vida, são as quatro operações, porcentagem, regra de três. Ponto final. Passou disso não preciso de mais nada, a não ser que eu seja um matemático. Então eu tenho de supor, com ou sem razão, que a matemática na escola tem um sentido formativo”, observa.
É difícil tentar desatar esse nó. Para os belgas Masschelein e Simons, é um problema quando a “aprendizagem (competências) toma o lugar do estudo e da prática”. Não que as competências (no caso, as competências profissionais) sejam um problema, mas não deveria caber a elas ditar o que é importante dentro da escola.
“Claro que a passagem pela escola faculta ao indivíduo as competências e as habilidades que vão ser demandadas no mercado, mas não é função da escola adivinhar o que o mercado deseja que seja veiculado”, afirma Carlota Boto, professora da faculdade de educação da USP. Para ela, a escola tem por tarefa a transmissão de um acervo cultural que vai muito além do mercado de trabalho. “A Hannah Arendt dizia que a geração adulta tem dois papéis: preservar as crianças do mundo lá fora, que é um mundo perigoso, e preservar o mundo da cultura para que as crianças, quando crescerem, não o destruam. A escola preserva o mundo da sua destruição, e isso é muito mais amplo do que preparar para o mercado de trabalho”, diz.
Uma ilustração desse desencontro sobre o papel da instituição se deu nas recentes ocupações de escolas no Estado de São Paulo. Diante da possibilidade de fechamento de dezenas de unidades devido a uma reorganização promovida pelo governo do estado, alunos em protesto passaram a acampar dentro das escolas e promover atividades culturais e aulas de temas que seriam mais “interessantes” do que aquelas do currículo regular. Mais do que demonstrar a revolta pela decisão unilateral do governo, tomada sem diálogo com a comunidade escolar, muitos enxergaram os protestos como uma reação dos estudantes a uma suposta “alienação” da instituição de ensino em relação ao mundo ao redor. E isso inclui a maneira como ela se apresenta para seus alunos.
O espaço físico da escola e a maneira como ela é organizada dizem muito sobre o que ela propõe para o seu público. “Em geral, os espaços são desrespeitosos na escola pública”, afirma Maria Maura Gomes Barbosa, coordenadora pedagógica da comunidade educativa Cedac, e coautora do livro O que revela o espaço escolar? (Editora Moderna). “Os meninos já têm um ritual do lado de fora que é a preparação para ir à escola: tem uma arrumação que se diferencia em cada faixa etária, tem a mochila. Qual a arrumação para receber esses meninos?”, questiona.
Em reuniões com diretores e gestores, Maura tenta mostrar como o espaço é capaz de estabelecer um diálogo com seus usuários. “A escola é um espaço de direito, que precisa revelar a que se propõe”, diz. Mesmo os objetos e a disposição da sala de aula podem variar de acordo com as atividades propostas
e com que cada momento requer. “A sala de aula revela uma concepção de ensino e aprendizagem”, observa a pesquisadora.
Para Carlota Boto, a escola tem um certo ritual que perpassa várias gerações de escolares e se mantém de maneira similar. Mesmo para organizar formas mais inventivas de sala de aula é necessário entender a força desse modelo. “A escola funciona como uma liturgia. Suas aulas, seus exercícios, a própria distribuição dos alunos no espaço e a organização da temporalidade da escola possuem um ritmo muito próprio, configurando ritos cotidianos. É preciso que os professores saibam agir como pesquisadores que sistematicamente avaliam o que, nesse ritual escolar, funciona melhor e o que nele está obsoleto. Há práticas que ficaram para trás. É preciso que abandonemos outras e que construamos novas práticas e
novos ritos”, afirma.
Como estabelecer, então, o diálogo entre a escola do tempo livre, suspensa da velocidade do mundo atual, e a ideia de futuro que se apresenta? Como responder à interpelação que o mundo digital faz a alunos e professores? Para pesquisadores, as ferramentas digitais podem ser um paliativo, um auxiliar, mas nunca uma resposta. “Quem de nós sabe o que é o futuro? Quem de nós poderia, há 30 anos, trabalhar com a hipótese da internet? O ritmo em que essas tecnologias se tornam obsoletas é tal que correr atrás delas é insensato”, afirma Carvalho, da USP. Para ele, isso não significa que a escola deva se fechar a esses elementos, mas sim dar-lhes um “peso real”.
Na opinião de Carlota Boto, é possível estabelecer uma relação criativa com a cultura digital, incorporar algumas referências e recursos, mas sem perder de vista o tempo e o espaço escolares. “A cultura escolar tem uma sabedoria. É preciso ter respeito por ela, não dá para dizer que agora, em virtude das novas tecnologias, vamos demolir essa cultura que há séculos vem sendo projetada pela escola para assumir esse discurso aparentemente mais progressista”, observa.
Afinal, escrevem Masschelein e Simons, o quadro-negro e a carteira não dizem algo sobre a quintaessência da escola? Se eles podem ser símbolos de autoritarismo ou “armas para a disciplina”, não poderiam também dizer algo sobre esse mundo que se revela na escola? “A lousa que abre o mundo para os alunos, e os alunos que literalmente se sentam perto dela. Ou o professor que, com gestos e presença, invoca algo do mundo na sala de aula”, assinalam.
“O mundo está em constante transformação e sempre coisas novas vão vir e sempre a gente vai ficar agoniado correndo atrás de alguma coisa que perdeu e que precisaria ser incluída na escola”, diz Miriam Chaves, da UFRJ. Ela lembra que a especificidade da escola é, justamente, a escolarização. E isso é diferente de educação – podem até ser sinônimos
eventualmente, mas não são a mesma coisa. Para a professora, a escola tal como a conhecemos nasce num princípio de justiça que ainda não foi superado, e foi fundamental para deixar para trás uma sociedade estamental, onde o direito era hereditário. “Ninguém inventou outra coisa que substitua a meritocracia. A escola ainda é o grande motor que possibilita a mobilidade social, por mais que a gente possa discuti-la”, conclui.
Ainda que essa mobilidade não seja seu principal objetivo, que está muito mais próximo de um processo de revelação da vida por meio de experiências vividas de maneira única no ambiente escolar.