NOTÍCIA
Um crocodilo disfarçado de escada rolante e um besouro-cronômetro? Pois esses bichos poéticos povoam a obra do poeta inglês Roger McGough, sem tradução no Brasil
Ilustração do livro “Da cabeça aos pés”, de Eric Carie (texto e ilustrações), Callis Editora, 2012 |
Até onde sei, o poeta inglês Roger McGough ainda não foi traduzido no Brasil. Seria uma boa ideia apresentá-lo ao público brasileiro, de modo especial aos nossos professores e alunos. O encanto de seus cantos está na força da imaginação. O poeta se considera “um impostor confiável”, porque na mentira dos versos revela verdades.
Num de seus livros, An imaginary menagerie (Zoológico zoado seria uma possível tradução para o título), nos ensina a ver animais poéticos fora das jaulas usuais: camelos voadores, um crocodilo disfarçado de escada rolante, um besouro-cronômetro, um iaque selvagem vestido ao modo oriental, um hadoque (peixe semelhante ao bacalhau) cantando um rock, um canário cabeludo que toma esteroides, uma porquinha com medo de navegar…
#R#
O poder da imaginação nos ajuda a ver o que nunca vimos. Em vários poemas deste livro, o autor nos pergunta: “Você nunca viu?”. Dando a entender que já está na hora de vermos melhor, com mais liberdade.
Você por acaso já viu uma “escada crocodilante”? O poema é assim, lido de baixo para cima, associando os degraus da escada rolante aos dentes da cauda do réptil:
lá em cima.
e engolirá você
para o alto
o levará
no shopping
nós subimos
pela qual
crocodilante
a escada
Saiba que
Tome cuidado, portanto. Ninguém passeia no shopping impunemente!
Visões e audições
O poeta é um combinador de imagens, e com essas imagens vai criando novas realidades que se tornam tão ou mais reais do que a própria realidade. Você nunca viu o menor dos antílopes soluçando?
Você nunca viu
o antílope dik-dik
fazendo hic-hic?
Isso sempre acontece
quando ele come à beça
e com muita pressa
Suas péssimas
maneiras à mesa
são famosas na savana inteira.
Para Roger McGough, a musicalidade e as imagens se entrecruzam. Os poemas merecem ser lidos em voz alta:
Você nunca viu
uma foca
com uma faca?
(Nem eu!
Isso não passa
de fofoca!)
Audição e imaginação conjugadas. A própria música deve estar presente (uma informação: Roger McGough é conterrâneo dos Beatles e com eles conviveu):
Você nunca ouviu
um tritão
tocando flauta?
Executando debaixo d’água
peças populares e clássicas
faz as bolhas estourarem música
na superfície do lago.
A poesia pode e deve ser lida em voz alta. Ouvindo, vemos melhor. Roger McGough lê seus poemas para diferentes públicos: performances que dão vida à letra impressa.
Para além da imaginação
Ser livre, dizia o escritor francês André Gide, não é nada. O problema está em saber o que fazer com a liberdade conquistada. O poeta vai escrevendo, arriscando-se, experimentando, ao sabor das palavras, todo tipo de surpresas:
Você nunca comeu
um basset bem-passado?
Com molho de tomate então…
é uma tentação!
Eu certa vez comi um buldogue
acompanhado de nhoque
(Ou tudo não passou
de outro horrível pesadelo?)
A fauna sempre foi uma parceira da literatura. Fábulas, metáforas da selva, dos mais altos ares e do fundo dos mares, nelas estão presentes os animados animais. Eles somos nós, até prova em contrário:
Você nunca viu
um tubarão
fazendo um piquenique
no parque?
Se ele oferecer a você
um sanduíche de queijo…
fuja!
Você nunca viu animais assim? Vendo-os, poderemos compreender um pouco melhor o bicho-homem.
*Gabriel Perissé é professor e pesquisador da Universidade Católica de Santos – www.perisse.com.br