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Entrevistas

O destino da leitura

O historiador francês Roger Chartier sugere que o livro de papel não está ameaçado pela era digital, mas pela percepção da leitura e do leitor, que se fragmentou irreversivelmente

Divulgação
Chartier: análise do efeito da era digital sobre a era do livro

Roger Chartier é um influente historiador francês. Personifica um tipo de intelectual interdisciplinar que atua no cruzamento entre disciplinas que durante muito tempo se ignoraram. Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, tem uma vastíssima obra, especialmente em história da cultura, com destaque para a história do livro e da leitura na Europa.

Rompe fronteiras com ar conciliador. Não por acaso, numa aula inaugural recentemente ministrada no Collège de France, propôs “escutar os mortos com os olhos” como um exercício de conciliação entre a história moderna, os documentos e a “plêiade de referência” (a tradição intelectual de autores, historiadores, sociólogos e filósofos).

Nesta entrevista, publicada originalmente pela revista Língua Portuguesa, em parceria com a portuguesa Letras com Vida n.º 5 (Lisboa, Gradiva-Clepul, 2012: 10-15. ISNN: 1647-8088), do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Chartier discute a tese de que o livro de papel não está ameaçado pela era digital, quem está é o status da leitura e do leitor. O que está em jogo não seria a mera forma material, mas o modo de percepção, que se fragmentou irreversivelmente.

Para Chartier, esse deve ser nosso ponto de partida, não de chegada, para a análise do efeito da era digital sobre a era do livro. Devemos tirar da fragmentação nossa força, evitando, ao máximo, a aplicação anacrônica de critérios de julgamento sobre as práticas de leitura.

#R#

Sua obra é citada por um público vasto e diversificado, em textos de história, literatura, filologia e peda­go­gia. Como apresenta a si mesmo?
A referência a identidades disciplinares é sempre problemática. Sou historiador. Aprendi o ofício com outros historiadores (Daniel Roche, Denis Richet). Fui formado pela leitura dos clássicos dos Annales: Febvre, Bloch, Braudel. E situei meu trabalho de investigação no contexto da disciplina histórica. Mas sempre pensei que a história deve entrar em diálogo com as outras ciências sociais, a filosofia ou a crítica literária. Daí as leituras que propus de sociólogos como Bourdieu ou Elias, de filósofos tão diferentes como Foucault e Ricoeur, ou autores difíceis de associar a uma disciplina específica, como Louis Marin ou Michel de Certeau. Daí também, nas minhas investigações mais recentes, o cruzamento entre a história da cultura escrita e a análise de obras maiores da literatura, a começar por D. Quixote ou pelas peças de Shakespeare.

Por outro lado, estou convencido de que o trabalho dos historiadores pode ajudar a compreender melhor as mudanças do nosso presente, em particular a revolução numérica [digital], cuja especificidade é melhor entendida quando comparada com outras revoluções na cultura escrita: o aparecimento do códex, a invenção da imprensa, as transformações das práticas de leitura, na Idade Média, no século 18 ou nas sociedades do século 19. São estas convicções, traduzidas em investigações ou reflexões, que explicam a diversidade dos meus leitores e ouvintes.

O jogo cruzado entre o historiador, os textos e a tradição intelectual corresponde àquilo a que chama de “história cultural”?
Julgo que a história, como disciplina, é permanentemente ameaçada por duas tentações. Por um lado, fechar-se nos seus próprios objetos e hábitos disciplinares, evitando um debate intelectual mais vasto; por outro, satisfazer-se com as discussões metodológicas ou epistemológicas, esquecendo-se de que deve ser acima de tudo produção de novos conhecimentos. Para se proteger destes dois perigos, um bom método será apoiar-se nas contribuições teóricas fundamentais das outras ciências humanas e sociais, e mobilizá-las para uma interpretação mais forte, mais densa, dos problemas históricos. É essa a razão de ser do cruzamento entre disciplinas que durante muito tempo se ignoraram.

Como promove esse cruzamento em seus estudos?
No meu próprio campo de estudos, trata-se de disciplinas ligadas ao estudo dos textos (filologia, crítica literária, análise do discurso), ao estudo dos objetos escritos, ma­nuscritos ou impressos (história da escrita, bibliografia material, his­tória do livro e da edição) ou ao estudo das práticas culturais. Em meu entender, a história cultural deve colocar no centro das suas interrogações os processos múltiplos que permitem a construção dos sentidos para os textos (ou para as imagens ou práticas) por parte dos diferentes agentes sociais envolvidos na produção, transmissão ou apropriação dos bens e das formas simbólicas.

A que chama de “Europa moderna”? Um lugar, um movimento cultural, uma vanguarda da intelectualidade e da modernização humanística e científica?
História “moderna” designa, na França, nos meios universitários, os três séculos que separam o fim do século 15 (1453 ou 1492) da Revolução Francesa, que abre o período da história “contemporâ­nea”. No entanto, “moderna” é também, para nós, a época que vivemos. Daí o jogo entre as duas acepções do termo nos meus cursos ou nas minhas reflexões.
A Europa “moderna”, entre os séculos 15 e 18, pode ser considerada a protagonista da descompartimentação do mundo, da revolução científica (na sua definição galileísta ou nas suas práticas experimentais) e da invenção dos direitos humanos, com a revolução inglesa de finais do século 17 e depois a francesa de 1789. Ela foi também palco de uma mudança fundamental na comunicação, pela utilização em larga escala da imprensa. Esta constatação não deve, contudo, fazer-nos cair novamente num eurocentrismo criticado pela história comparada das civilizações, ou as diferentes formas da história global. Ao mesmo tempo, essas histórias em escala mundial obrigam-nos a pensar sobre as razões que fazem da Europa moderna o agente mais poderoso de uma primeira mundialização, altura em que a história própria das outras civilizações foi posta em relação pelos europeus.

O senhor confia que o livro em papel resistirá ao eletrônico, mas não tem a mesma certeza em relação ao leitor e ao destino da leitura. Pode esclarecer?
O problema fundamental é o da relação entre a definição das obras, herdada do século 18, a qual supõe que elas sejam reconhecidas na sua identidade perpétua, e a leitura fragmentada, fendida, que é a do leitor diante da tela do computador. Mesmo que nenhum leitor seja obrigado a ler todas as páginas de um livro impresso, a forma material dele impõe a percepção da totalidade do texto aí contido. Donde resulta uma interrogação sobre a tensão entre duas lógicas. A lógica, ao mesmo tempo intelectual e material, do livro impresso, que faz com que as obras sejam reconhecidas na sua coerência e identidade própria, e a lógica, cultural, da textualidade numérica que convida à livre recomposição de fragmentos obtidos em bancos de dados numéricos, qualquer que seja a sua natureza.

Tal discordância parece justificar a crença na sobrevivência da forma de inscrição e de publicação escrita que associa o texto e o objeto, o livro como composição intelectual ou estética e o livro como códex impresso. Mas a crença recente, em todos os países, no mercado dos “livros” eletrônicos, que acompanha o sucesso comercial dos tablets de todos os tipos, pode pôr em causa a validade deste diagnóstico e abrir um mundo textual em que poderiam desaparecer as categorias antigas, um mundo de textos abertos, de obras manipuláveis, de fragmentos indefinidamente recompostos.

Como, então, encara a metamorfose resultante da transformação do leitor em navegador?
A diferença entre a numerização [digitalização] de textos publicados anteriormente em forma impressa e os textos nascidos na forma numérica revela bem esta tensão. Pois se a numerização tenta preservar na nova tecnologia os critérios de identificação, a escritura originalmente digital permite inventar relações com a escrita efetivamente originais, livres dos constrangimentos dos direitos de autor e da página impressa. Enfim, como será o futuro, o historiador, pobre profeta, não pode prever.

O caráter desconstrutor da pós-modernidade significa o fim de uma certa racionalidade?
Não pertenço à família dos nostálgicos que lamentam aquilo que designam como uma decadência dos saberes, uma diminuição do nível dos alunos ou a extinção da cultura escrita. O erro deles parece-me derivar da aplicação anacrônica de critérios de julgamento antigos, e socialmente determinados, a novas realidades, sejam elas sociais (com a democratização do ensino) ou técnicas (com a entrada no mundo numérico). O que permanece válido estará dependente das pressões acrescidas da “exigência social”, como costuma dizer-se, sobre o trabalho científico?

As disciplinas de erudição enfrentam sérias dificuldades para manter o seu lugar no campo universitário ou nos programas dos grandes centros de investigação. Portanto, como é atestado por exemplos notáveis, não há contradição entre a prática de uma erudição rigorosa, ligada a passados longínquos, e a compreensão crítica do nosso presente. O trabalho de Armando Petrucci, por exemplo, mostra que a história de longa duração da cultura escrita é um dos melhores instrumentos para perceber adequadamente o papel da escrita no exercício dos poderes e dominações, na produção das hierarquias e desigualdades ou na exclusão dos “sem papéis” e “sem escrita” nas sociedades contemporâneas. Para lá desta capacidade crítica, as disciplinas de erudição ajudam a compreender que o presente é feito de passados sedimentados ou recompostos e, para os decifrar, é preciso poder situá-los na sua história própria. Temos de acreditar que os governantes de hoje saberão compreendê-lo.


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