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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 01/08/2014

O César foi doar sangue

E se cuidássemos de debater a gestão democrática com seriedade?

José Pacheco_coluna Foto: ©Antonio Larghi

César é nome de imperador. Mas o César, protagonista do episódio a seguir narrado, é um professor português. E o episódio teve lugar na terra do Pedro IV, embora pudesse ter por cenário a Pindorama, onde o mesmo Pedro ficou conhecido como o primeiro dos monarcas.

Fui a Portugal, para um longo périplo, feito de encontros com novos e velhos amigos, que retomam sonhos suspensos há mais de vinte anos. Maravilhosos educadores esses, que buscam caminhos de felicidade para as novas gerações. Parece que o Portugal da educação (finalmente!) despertou. É anima­dor verificar que muitos pais e professores se aliam em alternativas credíveis ao modelo obsoleto de escola, que o ministério mantém.

Porém, numa das cidades por onde passei, a sala onde se realizaria a palestra estava quase deserta. A organização do evento desculpou-se com estes dizeres: Os diretores foram impedidos de autorizar a participação dos professores. E muitos se tinham inscrito! Apenas um conseguiu vir.

Quis saber como esse sobrevivente professor tinha conseguido contornar a situação. Foi o próprio quem me esclareceu: Os meus colegas não quiseram ter falta injustificada, nem se dispuseram a ir doar sangue…

Doar sangue? – questionei.

Sim! – completou o César. Quando vamos doar sangue, temos direito a um dia de dispensa de atividade letiva.

Junto a este desconcertante episódio um e-mail recebido de outro professor, este do Brasil: A questão da autonomia do professor já vem gritando há algum tempo. A frase mais constante que tenho percebido, revelando um sistema com resquícios escravocratas nas nossas escolas, é: “Cuidado, vem aí o diretor!”, falando aos professores por qualquer motivo pífio, como o fato de alunos estarem fora da sala de aula. Hoje, felizmente, essa frase entra por um ouvido e sai pelo outro, porém já tive muito medo. Já sei melhor quem eu sou e mereço respeito, mesmo errando bastante. Mas me chama a atenção o modo como as pessoas fazem isso, para cultivar um medo que, provavelmente, as assola há muitos anos.

É realmente entristecedor e tenho buscado esperança e coragem para continuar. Recentemente, tive uma reunião de pais, onde pais e professores mais pareciam zumbis hipnotizados por uma fala monótona e ditatorial da direção escolar. Eu fui o único professor a falar, mas me acanhei, não cabia falar todo o turbilhão que se passava em mim naquele momento. No dia seguinte não conseguia me concentrar nas aulas e a semana se arrastou (…).

Regressando à sangrenta autonomia do César… Quis levar a sua turma numa “visita de estudo”. Dessa vez, não precisou doar sangue, mas teve de pedir autorização aos “superiores hierárquicos”.

Na boca de políticos e técnicos, a expressão “gestão democrática” constitui-se numa caricatura de autonomia. Qual o espaço de exercício de autonomia e da dignidade profissional, numa cultura eivada de controlo e dependência? Pesada herança feita de escravagismo e coronelismo, sarro de imperiais relações de poder! Miséria de profissão, cujo profissional tem dever de obediência hierárquica!

Até quando o César precisará doar sangue? E se cuidássemos de debater a gestão democrática com seriedade?

*José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

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