NOTÍCIA
A linguagem cartográfica pode revelar segredos, desvendar mistérios, contar histórias e representar a realidade, mas também pode criar ilusões
O livro Cartografia, da coleção Como eu ensino, pontua um importante referencial bibliográfico no contexto da produção científica e, ao mesmo tempo, dedica-se ao diálogo com os professores interessados em uma transposição didática atual e condizente com processos de ensino-aprendizagem de qualidade.
Os autores conferem um tom instigante à interpretação da cartografia do século 21 e aventuram-se na desestruturação dos mapas dos moldes convencionais. O objetivo é propor a reconstrução deles sob a perspectiva de uma linguagem que precisa ser questionada para manter sua função cognitiva – que vai muito além de simples ilustrações.
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A obra questiona as convenções cartográficas frente à necessidade de contextualização e (res)significação do mundo contemporâneo, considerando, sobretudo, os fenômenos relacionados à globalização. No entanto, sem perder de vista a história, o livro retoma a trajetória da cartografia e a importância dos mapas, desde os primórdios.
No século 16, a cartografia venceu o desafio de representar uma esfera (a Terra) em plano. Para isso, lançou mão da projeção de Mercator, desenvolvida principalmente para atender as grandes navegações da época. A naturalização da visão de mundo com a Europa no centro do planisfério refere-se a um “fundo do mapa” aceito hoje como óbvio e indiscutível, dispensando equivocadamente análises críticas e problematizações acerca dessa representação. Tal naturalização é apontada na obra como um dos pilares da “crise dos mapas”. Para superá-la, é necessário romper com o processo de reprodução automatizada dos mapas, deslocando-os sabiamente para o centro do debate crítico.
É notável a ênfase dos autores sobre os limites impostos pelos mapas com base na geometria clássica euclidiana, que é incapaz de lidar com fenômenos geográficos complexos, cujas representações são impraticáveis em mapas lineares e estáticos. A ideia do livro é desestruturá-los a ponto de fazer emergirem novos mapas e saberes – incluindo e valorizando projeções alternativas, como as anamorfoses.
Esse repertório de renovação cartográfica inclui não só o desenvolvimento de um “mapa para ler”, mas também um “mapa para ver”.
Atualmente a cartografia pode ser desenvolvida com o uso de recursos tecnológicos, como as imagens de satélite dotadas de precisão e detalhes jamais alcançados. Mas, por trás da tecnologia, os mapas ainda imprimem antigas cosmogonias. Por exemplo: o moderno Google Maps usa a base e projeção de Mercator. Os modelos de mapa herdado estão enrijecidos e naturalizados nos materiais didáticos, atlas, dentre outras publicações que reforçam o imaginário e a realidade – conforme destacado pelos autores: “os mapas não criam apenas visões de mundo, eles criam mundos”.
A nova lógica espaço-tempo na era da globalização desafia a cartografia, especialmente porque a visão de mundo continua presa ao “pensamento territorial”, privilegiando as extensões. Isso leva a uma questão central: como expressar um mundo novo, dinâmico e pleno de centralidades e fluxos materiais e imateriais? Nesse ponto, poderíamos pensar que as geotecnologias poderiam contemplar soluções – mas não é bem assim.
As imagens de satélites e a plataforma Google Earth compreendem uma fabulosa ferramenta didática, mas não substituem os mapas. Seu uso como recurso escolar pode ser recomendado, desde que haja esclarecimentos prévios sobre suas contribuições e seus limites. Assim, no contexto da cartografia escolar, os mapas ainda conferem interpretação gráfica aos espaços e aos dados das imagens de satélites.
Lilliam Rosa Prado é geógrafa pela USP, professora, autora de livros didáticos, especialista em análise ambiental e doutoranda em meio ambiente pela UFPR. lilliamrosaprado@hotmail.com