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Educar é argumentar

Muito do que pensamos ser educação depende da visão que temos sobre a prática da argumentação

É o clichê da unanimidade. A solução para o Brasil é a educação. Mas quando nos perguntam que tipo de educação é a ideal, em geral dançamos miudinho num campo discursivo gelatinoso.
O esperado é que a resposta tenha a ver com a ideia de uma educação que faça a pessoa pensar de forma crítica. O que seria uma educação crítica é que são elas.
O filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) se desafiou a saber o que, de fato, estamos fazendo ao responder a esse tipo de questão. E concluiu que muito do que pensamos ser educação depende da visão que temos sobre a prática argumentativa. As conclusões foram apresentadas num colóquio em Cerisyla-Salle, em 1993, no contexto de um diálogo mantido com o filósofo alemão Jurgen Habermas, e publicado no Brasil com o título “Verdade, universalidade e política democrática”, do livro Filosofia, racionalidade, democracia: os debates Rorty & Habermas (São Paulo, Editora Unesp, 2005).
Educar, diz Rorty, é agir segundo a ideia de que as pessoas podem não seguir nossos argumentos, mas tendo a esperança de modificá-las para que um dia possam. Já argumentar é pressupor que os outros seguirão o que dissermos. O modo como os professores relacionam o que fazem à situação de comunicação que vivenciam denuncia uma dessas concepções profissionais. Pois uma coisa é querer convencer o aluno, outra é deixá-lo preparado para abandonar as próprias opiniões quando ouvir coisa melhor. A maioria das vezes, ficamos no meio desses extremos, diz Rorty (2005: 119).
Desafios
Nossos alunos chegam à escola ou à faculdade preconceituosos, machistas, racistas, homofóbicos, fundamentalistas, violentos e grosseiros. Os professores, ao menos os melhores, querem que saiam dela mais parecidos com eles, refinados, secularizados, humanistas, liberais, tolerantes.
Fanáticos religiosos poderiam dizer, no entanto, que a situação de comunicação de muitas salas de professores liberais promove, isto sim, uma doutrinação em seus filhos fanáticos, do mesmo jeito que os nazistas faziam com seus alunos alemães. Numa sociedade democrática, dirão, ninguém deveria ser obrigado a ser submetido a algo que contradiga suas crenças.
A professora de português Cristina Inês Saliba Calasso assumiu em 2010 a função de mediadora da Escola Estadual Doutor Murtinho Nobre, no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo. Como responsável pela justiça restaurativa na escola, cabe a ela instalar um ambiente de debate para a escola reverter episódios de racismo, conflito religioso, violência e indisciplina, em conjunto com alunos, professores e familiares.
“São comuns as ocorrências de homofobia nas escolas, de rejeição a colegas recém-chegados e preconceito contra a obesidade, contra negros e até contra a pele manchada ou o cabelo crespo de não negros. A ofensa é sempre transferida à mãe do outro. Nestes seis anos de atuação com conflitos escolares aprendi que ensinar é permitir que o diálogo mude as pessoas”, diz Cristina.
Educação crítica
Professores sonham formar alunos capazes de encarar uma questão por vários ângulos; de dar respostas consistentes independentemente do contexto e da transformação tecnológica que testemunhem ao longo da vida; de deixar de lado o ódio, a imaturidade e a crendice; de saber seus direitos e deveres em ambientes instáveis; de encarar perspectivas diferentes sem se sentirem ameaçados; de criar mecanismos de autorregulação internos que permitam a relação civilizada com os outros; de tornar as pessoas capazes de ler, sem vomitar, obras de Darwin, Freud, Bocage, Machado de Assis, Einstein, Marx, Adam Smith, Sade ou Tomás de Aquino.
Essa, em resumo, é a educação crítica dos sonhos.
Educação ideológica
O contrário disso é a educação ideológica. Como a que fundamentalistas, stalinistas e neoliberais, os intolerantes étnicos ou os nazistas impuseram às juventudes dos lugares que controlaram.
Para fazer a criança alemã acreditar que judeus, gays e comunistas eram aberrações a serem aniquiladas, os nazistas usaram até métodos de persuasão indireta, como filmes e livros com vilões sanguinários de origem judaica, homossexual ou esquerdista. Mas no cotidiano escolar ou no tête-à-tête, apelaram a práticas mais professorais, que dispensavam a violência física, mas tinham o efeito de uma surra, na linha: “Pare de fazer perguntas imbecis”.
Esta seria a forma econômica, diz Rorty (2005: 151-2), de “Pare de nos dar motivos para duvidar de sua adesão às nossas posições e de questionar as razões que nos fizeram aceitá-lo em nosso meio”, que carrega, implícito, o senão ameaçador: “Ou daremos o troco”.
Abordagem
Se os professores são vagamente humanistas e esbarram em alunos reacionários ou violentos, é muito possível que o esforço concentrado seja o de mostrar os benefícios do humanismo, diluir a agenda das boas intenções e emitir o sermão da montanha entre quatro paredes. Talvez até façam, exemplifica Rorty, com que alunos homofóbicos escrevam relatos imaginando-se crescer como homossexuais, assim como os professores do pós-guerra exigiam que alunos alemães lessem O Diário de Anne Frank.
Esse tipo de abordagem é “muito pesado”, avalia o educador social Marcos Levi Nunes. “Seria inútil e soaria como ofensa”, diz.
Ele é coordenador da Equipe Interinstitucional, uma rede de 13 ONGs de Fortaleza (CE), que lida com educandos em situação de vulnerabilidade social ou promove intervenções extracurriculares.
“Mais interessante é a abordagem menos direta, que traga à tona exemplos de gays que fizeram coisas importantes na comunidade daquele aluno. Por isso, é preciso pesquisar. Saber se alguém do grupo social do educando já passou por um problema resolvido por alguém que é potencial alvo do preconceito dele”, diz Levi.
Validade universal
Para Levi, é possível construir uma educação crítica apenas se o educador buscar uma “perspectiva de interrogação dos princípios” argumentativos do aluno, não de repúdio a suas ideias. “Não vale lançar agressões à visão de que discordamos. A perspectiva social do estudante vem da construção da família, do contexto de vida, da visão dada por outros professores e amigos a que ele teve contato. Podemos fazer o esforço de compreender a razão do dogma, mas não simplesmente argumentar que aquele dogma é ruim. Seria inútil”, diz o educador.
Richard Rorty concordaria. Se simplesmente dissermos a um racista que nossos argumentos não racistas têm validade universal, pois ultrapassam o contexto e constituem uma verdade, a essência da coisa, ele pode muito bem dizer que é exatamente isso o que ele faz. A saída seria persuadi-lo de uma forma mais indireta, ilustrando cada argumento: dando exemplos de coisas óbvias hoje que já foram consideradas absurdas no passado ou de realizações humanas feitas por negros, ateus, gays, obesos ou quem for considerado abjeto por ele (Rorty, 2005: 122).
Enquadramento
Tudo o que for forçado goela abaixo, sem contrapontos que neguem a tese principal, reproduzirá a violência da educação ideológica. Mas educação não é só realizada por quem sabe argumentar. Porque apela também a emoções (ninguém diria que exibir filmes sobre abertura de campos de concentração a um nazista valha como argumentar com ele, sugere Rorty). As crenças de uma pessoa podem ser negadas, mas não todas ao mesmo tempo. Se temos chance de mudá-las talvez seja por via argumentativa, preparando terreno para nossas ideias ao criar, antes, nichos de concordância com os interlocutores, para torná-los mais receptivos quando apresentamos nossas ideias.
Trata-se da construção de contextos, recurso retórico da Antiguidade, de descrever uma situação facilmente assimilada pelo ouvinte antes de emitir para valer uma opinião. O francês Philippe Breton, em A argumentação na comunicação (Edusc, 2ª edição, 2003), chama o expediente de “enquadramento”.
Enquadrar é tentar modificar o conjunto de opiniões e valores prévios, partilhados por quem nos ouve, para só então abrir espaço para nossa opinião. Não posso defender a liberalização das drogas a policiais linha-dura sem antes derrubar seu natural asco pelo tema. Sem esse esforço prévio, nem teriam paciência em ouvir. Em aula, a situação de comunicação pede o mesmo esforço.
Na escola em que Cristina Inês faz mediação, em São Paulo, duas alunas do 8° ano do fundamental, uma recém-chegada da Paraíba, outra do Rio de Janeiro, foram rejeitadas pela turma, e de forma ofensiva. A questão só foi resolvida quando a mediadora juntou-se a professores de disciplinas como história para promover uma roda de conversas.
O círculo argumentativo instigou os alunos a pontuar o que os incomodava nas alunas. Em seguida, os professores orientaram o debate para que os estudantes imaginassem a situação invertida: a de cada um deles transferido para o Nordeste ou o Rio.
“Preconceito não é bullying. É preciso parceria com um professor de história, um de sociologia ou outro, para que ele traga exemplos em que a cor da pele, por exemplo, não conta como julgamento do caráter”, diz a mediadora.
Cristina Inês considera que as salas de aula de hoje são heterogêneas. Não estamos mais numa situação de comunicação equilibrada, com alunos da mesma experiência social. O acesso de estudantes de todas as classes corrige a distorção do passado, em que só a elite recebia educação formal. A ampliação do acesso exigiu não só lidar com níveis desiguais de conhecimento discente, como deixou evidente o despreparo de professores em defender a agenda da diversidade ante audiências resistentes ou indiferentes. “O professor, sozinho, não dá conta de divergências de visão e de conflitos. Para piorar, a cada ano há muitas mudanças no quadro de professores, o que mina a continuidade do debate”, diz.
O papel da escola também foi desvalorizado pelo acesso ligeiro à informação, e pela busca, fora dos bancos escolares, de saberes de aplicação imediata. A convergência de perspectivas, em tal contexto, é rara ou rala. Os professores se sentem vexados a reformular suas práticas de justificação. E nem sempre se comportam como se soubessem fazê-lo.
Para Cristina Inês, o professor em geral desconhece o nível de formação do aluno, o tipo de debate que é feito na casa dele, o contexto em que se situa. Argumentar, então, significa definir acordos de respeito mútuo e continuar acompanhando os envolvidos depois que um conflito de concepções se dissolve. O professor pode, por exemplo, tornar-se parceiro de mediadores. Só em São Paulo, 1,2 mil deles passaram a atuar em mil escolas da rede pública em 2010.
“Turmas capazes, mas sem interesse, são em geral agressivas. Nessa hora, é preciso formar um círculo. Perguntar a todos o que fariam de diferente, o que gostariam que acontecesse na escola. Mas não adianta, numa situação de conflito, entrar na sala e resolver tudo com os ânimos esquentados. É melhor levar os envolvidos a um ambiente menos tenso.”
Retórica
A questão é que só o contexto, só a resposta local, no dia a dia da sala de aula, traça uma linha divisória entre educação ideológica e crítica. Não há nada no mérito de argumentos críticos que, in natura, faça isso. Não há uma razão em si que, bastando segui-la, impedirá que os erros da educação ideológica se reproduzam na que achamos ser uma educação crítica.
Mais desafiante que convencer as pessoas de que possuímos uma verdade de validade universal é persuadi-las a, ao imaginar seus argumentos, ampliar o tamanho da audiência que acreditam digna de atenção.
Muitos agem sob a intuição de ter alegações e evidências definitivas, que sobreviverão a argumentos e fatos que surjam no futuro. Dizemos que isso recebe o nome de verdade. Professores bem-intencionados costumam estar empanzinados delas. Rorty rebaterá tal ideia, alegando que a única função da palavra “verdade” é nos precaver contra situações imprevisíveis (dilemas morais, audiências ou argumentos que poderão virar corriqueiros, mas são impensáveis hoje em dia).
A justificação, quanto maior ela for, mais passível de alcançar outras audiências sem ser refutada. Planejar o que dizer (planejar aulas) pensando nisso é passo importante para o poder de fogo de quem tem na argumentação uma forma de sobrevivência.

Como lidar com o conflito de opiniões

– Colher informações do próprio aluno para estruturar sua argumentação pode ajudar o professor a lidar com preconceitos e dogmas. Por isso, antes de argumentar, conheça a plateia. Tente entender se o aluno vem de família religiosa, racista, etc., como ele encara o legado de opiniões que recebeu. Use essas informações para construir sua própria linha argumentativa.
– Ante uma resistência agressiva, é preciso chamar o aluno à parte e sugerir uma conversa. A reação comum dele pode ser: “Não tenho nada para falar”. A resposta deve ser na linha: “Mas tenho muito a saber”.
– Se possível, tenha a companhia de outros professores ou responsáveis ao argumentar com um aluno sobre questão que considere polêmica ou delicada.
– Ante certos debates, como sobre homossexualidade a alunos de 6ª série, por exemplo, é preciso autorização dos pais para tratar do tema em aula.
– Forme círculos de debates sempre que estiverem em discussão temas considerados espinhosos.
– Não confronte. Use exemplos indiretos para rebater o conservadorismo. Dê exemplos de coisas óbvias hoje que já foram consideradas absurdas no passado ou de realizações que ajudaram a humanidade, feitas por negros, ateus, gays, obesos ou quem for considerado abjeto pelos alunos. Se possível, use exemplos da comunidade em que a escola está instalada.

Autor

Luiz Costa Pereira Junior, da revista Língua Portuguesa


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