COLUNISTAS

Colunista

José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 10/07/2013

Carta para João Cabral

Gostaria de poder dar-te boas notícias da educação, mas essas são poucas

José Pacheco_coluna Foto: ©Antonio Larghi

Prezado João Cabral, que nos falavas de quantos morrem sem nunca terem vivido, saiba que ainda se morre no Brasil de morte igual, da mesma morte severina: a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte. Enquanto releio teu desabafo – Escolas são usinas, que engolem gente e vomitam bagaço – medito sobre a cruel atua­lidade das tuas palavras: o que fizemos de meio século de história? Aqui, na Terra, caro João, estão jogando futebol em estádios que custam milhões, enquanto se morre de fome um pouco por dia, porque a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida.

Gostaria de poder dar-te boas notícias da educação, mas essas são poucas. Apenas te darei notícia de professores atentos. Escutemos a Ellen, conversando com os seus alunos sobre o que querem ser:

Uma boa parte quer ser médica, outra parte quer ser engenheira e não identifiquei algum querendo ser professor. A comunidade na qual se localiza a escola em que trabalho tem altos índices de violência. Descobri que alguns alunos gostariam muito de ser pedreiros. Mas por que sonhar com uma profissão tão árdua e de pouca remuneração? Fiquei sem entender! Até que um daqueles, que sonham em ser pedreiro, teve dó de mim e resolveu explicar o motivo de muitos quererem essa profissão.

Tia, a senhora sabe o que é e o que faz um pedreiro?

Pedreiro é o profissional que trabalha na construção civil. Não deverias tentar ser doutor?

Ele sorriu e respondeu:

Tia, pedreiro é quem vende crack­. Aqui, quem vende mais pedras ganha mais, tem “participação nas vendas”. A senhora não vê alguns alunos com celulares de última geração e cordão da moda?

Neste momento, meu mundo desabou completamente. E, quando se justifica uma ajuda a professores que querem mudar a escola, crê, caro João, se contrata mais polícias e se constrói mais prisões.

Outro João me confidenciou que a diretora da escola o chamou para lhe sugerir que levasse o seu filho para uma escola particular, porque aquela só tinha aluno marginal, aquele aluno que a escola-usina vomita como bagaço, na ignorância de que o marginal regressará, armado de fuzil, ou já cadáver, exibido nos jornais e na TV.

A curiosidade levou-me até à escola dos ditos marginais. Contornei altos muros e dispositivos de proteção. Passei por jardins cobertos de lixo. Desemboquei num pátio repleto de avisos de proibições, entremeados de grades. Olhar inquisidor de uma funcionária fuzilava o visitante. Escutei os gritos de professores, dando aula. Vi jovens alheios à aula, bocejando, usando celular, fones nos ouvidos.

Em pleno século XXI, o da suposta valorização de minorias, num lugar remoto do nosso Brasil, escuto narrativas de culturas destruídas. Como aquela que nos fala de um astrônomo que visita uma aldeia, instala a sua luneta e convida um jovem indígena a espreitar constelações.

Consegues ver a constelação de Escorpião? pergunta o astrônomo.

Não. Eu vejo a da onça – responde o indígena.

Decorridos dois anos, o cientista reencontra o mesmo jovem na universidade. E renova a pergunta: Então, meu jovem, já consegues ver o Escorpião?

O jovem indígena responde: Consigo ver o Escorpião, sim. mas deixei de ver a onça. Houve um dia em que o escorpião matou a onça. E, agora, João?

*José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Leia também:

A boa, a má e a vilã


Leia mais

educação ambiental

Caminhos para gestores e professores implantarem a educação ambiental em...

+ Mais Informações
Sustentabilidade

Mais que aprender, vivenciar

+ Mais Informações
rotina escolar

Rotina escolar não pode ser espetáculo farsesco e perigoso

+ Mais Informações
humanidade

Continuará a saga humana no embate entre humanidade e crueldade?

+ Mais Informações

Mapa do Site